sábado, 9 de novembro de 2013

Faca do Gaúcho

Faca do Gaúcho
 
Raul Annes Gonçalves
Mala de Garupa - Costumes Campeiros
Martins Livreiro - Editor
Sem exceção alguma todo gaúcho usa faca. Às vezes até duas. Uma pequena para picar o fumo e aparar a palha para o cigarro, outra grande para qualquer trabalho. Alguns, em vez de usar a faca grande, usam o facão ou adaga. Aqui, vamos nos referir como os gaúchos usam a faca, não entraremos em detalhes sobre os diferentes tipos de facas.
O gaúcho leva sua faca na cintura, atrás, entre o cinto e a bombacha, com o cabo voltado para a direita ou para a esquerda, se for canhoto. Se usar também uma pequena, é enfiada adiante ou metida de um lado. Quando um gaúcho crava um espinho na mão ou no pé, logo dá de mão na faca para tirá-lo. Se suas unhas estão sujas, limpa-as com a ponta da faca, e se estão crescidas, também é com a faca que as corta. Às vezes, a faca também é empregada como palito.
Recorrendo o campo, se encontra um animal morto e em estado de putrefação, tornando-se impossível tirar o couro, o campeiro procura aproveitar um pedaço, coureando a parte ainda firme, fio do lombo e costilhar. Crê o gaúcho que o couro meio ardido é mais forte para se fazer cordas. Nesse trabalho, sua faca passa a cortar partes do animal já em adiantado estado de decomposição, com forte mau cheiro, cheio de vermes, carne azulada em escorrirnento de água, viscosa, proveniente da podridão dos intestinos. Terminada a coureada, o gaúcho limpa sua faca nos pastos ou no lombo de um cachorro e a põe na bainha. Lava as mãos na primeira água que encontrar, e assim, ele como a faca, ficam prontos para entrar em ação na primeira oportunidade que for preciso. Ao chegar na estância ao meio dia, se em vez de comida de panela tiver um assado no espeto ou nas trempes, à hora de cortar o gaúcho puxa pela faca e corta no assado.
Quando aparece uma rês com um tumor, o gaúcho a examina. Se estiver um tanto mole no interior, sinal que deve ser lancetado, isto é, está maduro e é necessário dar saída ao pus. Neste caso o gaúcho procura entre os companheiros uma faca pontiaguda e bem afiada, e com ela dá um ligeiro pontaço por baixo da parte volumosa, quadrando antes o corpo para um lado a fim de não ser atingido no rosto ou na roupa pela matéria de cor amarelada e fedentina, que logo é expelida pelo orifício produzido pela faca. Feita a operação, o gaúcho limpa a faca nas gramas e a devolve ao dono. Este, meio desgostoso, por sua vez a limpa no cano da bota e a enfia na bainha. Na hora da comida, se houver fervido à mesa, o gaúcho saca da faca, pois na mesa só tem garfo e colher, e sem pestanejar começa a descamar o "puchero", pedaço por pedaço com a ponta da faca e o dedo polegar, levando~os à boca tranqüilamente.
Se ao carnear lhe toca sangrar, o gaúcho apóia a mão esquerda nas cruzes da rês e com agilidade e maestria, empunhando a faca com a direita, enfia-lhe o ferro até o cabo no sangrador, isto é, no peito. Ao retirar a faca, o sangue jorra aos borbulhões. O campeiro limpa a faca passando-a nos pastos ou na crina do ca~ valo, e a coloca na cintura, sem garbo algum pela perícia com a qual acertou bem a sangria. Mas, ufano de sua faca, exclama em tom de troça, "eta faca buena, me dá vontade de botar ela no bolicho para comprar de novo".

A castração de terneiro e de cordeiros é feita só com a faca, sem cuidado algum. Porém, para castrar um cavalo, o gaúcho além de afiar com esmero a sua faca, a lava com água e sabão, como também a parte externa do animal que vai ser apevada. Parece que é só neste caso que o campeiro cuida do asseio de sua faca.
Contam de um gaúcho que usava uma bonita faca de cabo prateado e andou na revolução de 93. Uma ocasião prontificouse para degolar uns inimigos prisioneiros conhecidos como bandidos e responsáveis pela matança de uns de seus companheiros de arma. Findou a revolução e tempos depois, em uma festa de casamento, este gaúcho notando que a dona da casa estava mal de faca para cortar os assados, sem escrúpulo algum, ofereceulhe sua bonita faca de cabo de prata, que foi aceita pela senhora. O gaúcho vendo com que agilidade e perícia sua faca, nas mãos da dona da casa, trinchava um leitão assado, não se conteve e entusiasmado gritou: "oigalê faca bem ensinada, também por estes mundos afora pelou muito ... (os que estavam presentes e o conheciam olharam-se espantados, porém riram satisfeitos quando o atrevido gaúcho terminou sua frase dizendo) ... couro para lonca!"
Antigamente era comum os gaúchos velhos dizerem para os jovens que ainda não usavam faca, por não lhes ser permitido devido à pouca idade: "homem sem faca é como mulher sem camisa".

Naquele tempo, entre as mulheres, isso não era admitido. Andar desprovida desta peça de vestuário era humilhante, mesmo um vexame.

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