domingo, 8 de abril de 2018

O herói sem caráter


Há inegáveis pontos comuns entre Lula e Macunaíma, personagem de Mário de Andrade: ambos saem dos grotões do Brasil, conquistam poder e glória até se lambuzar na máquina da corrupção.

Em 1928, o escritor Mário de Andrade lançou o romance “Macunaíma — o herói sem nenhum caráter”. Ele criou o personagem que sintetizava a alma mestiça e malandra do brasileiro. O livro antecipou em literatura os estudos acadêmicos que, dali a poucos anos, ofereceriam interpretações sobre a sociedade do Brasil, como “Casagrande e Senzala” (1933), de Gilberto Freyre, e “Raízes do Brasil” (1936), de Sérgio Buarque de Holanda. Macunaíma — ao lado da tela “Abaporu”, o antropófago de Tarsila do Amaral, também de 1928 — é o símbolo modernista do Brasil que nunca chega a uma síntese perfeita. O mestiço que se identifica com o senhor da Casa Grande; o brasileiro que vive de trambiques e prefigura o homem cordial de Sérgio Buarque de Holanda.
Macunaíma nasce na selva “preto retinto e filho da noite”, parido por índia tapanhuma. Desde menino, faz “coisas de sarapantar” e vive exclamando “Ai, que preguiça!”. Não tem caráter. Para compensar, pilha elementos de todas as culturas. O “herói da nossa gente” resulta da miscigenação e da imaturidade. Num belo dia, ele se banha em uma fonte, fica branco e parte para São Paulo atrás do seu amuleto, a muiraquitã, roubada pelo gigante Pietro Pietra. Na cidade grande, esquece a missão inicial e se deixa arrastar pelas seduções da sociedade moderna.
Lula encarna o Macunaíma na vida real. A exemplo da figura literária, ele parece refletir os anseios e os vícios do povo. Nasce igualmente no sertão. Faminto, parte com a família em um pau-de-arara rumo à cidade grande, na mesma São Paulo de Macunaíma. Ali, começa a escrever a própria lenda, a saga do retirante nordestino que galga postos: primeiro operário, logo dirigente sindical e deus da conjuração dos metalúrgicos que abala a ditadura e finalmente dirigente máximo do povo. Banhado na fonte do poder, Lula se metamorfoseia na maior autoridade da nação. Nem sempre de forma lícita, conquista o poder e bens materiais.
Assim como Macunaíma, Lula é um predestinado que eletriza as multidões, coleciona aliados e dá aulas de picardia. Consolida a aura mítica, em parte por sua própria lenda pessoal, em parte pela construção artificiosa dos marqueteiros. Por isso ele provoca tanta paixão e identificação de boa parte dos brasileiros, e continua a despertar paixões e intenções de votos. Macunaíma nunca sonhou em ser presidente do Brasil.
Quando Macunaíma troca os grotões pela metrópole, passa a cultuar a máquina do capitalismo nascente. Deslumbra-se com bancos, indústrias e a efervescência econômica. De forma análoga, Lula venera o mecanismo do capital: a política, a conquista das massas pela retórica, os atrativos das empreiteiras, bancos e estatais. Ele e Macunaíma se lambuzam nos excessos e nas facilidades da civilização corrompida.
No romance, Macunaíma é desmascarado. Em vez de investir na imagem de herói capenga, ele se aborrece da “terra de muita saúva e pouca saúde” e volta à mata para se transformar na constelação da Ursa Maior, indiferente ao povo que o gerou e que um dia ele representou.
Na vida real, Lula é condenado e preso por corrupção. Além de negar tudo, ele não parece nutrir o mesmo anseio humilde de se transfigurar em estrela distante. Prefere encarnar a versão do mártir de um povo que se mostra hoje mais indiferente do que ele jamais imaginaria. Lula é mais macunaímico que a criação de Mário de Andrade. É o ultra-Macunaíma.
Mas os tempos da contravenção anárquica e alegre que inspiraram por tantos décadas o folclore nacional parecem agonizar. Existe ainda o herói mítico que irá salvar o povo brasileiro? Para quem ainda se ilude, convém lembrar o que diz o narrador do romance: “Herói? Tem mais não.”
Luís Antônio Giron