sábado, 9 de novembro de 2013

Contos Gauchescos (IV)

O anjo da Vitória
Foi depois da batalha de Ituzaingo, no passo do Rosário, pra lá de São Gabriel, do outro lado do banhado
de Inhatium. Vancê não sabe o que é inhatium?
Ë mosquito: bem posto nome!
Banhado de Inhatium. .. Virge’ Nossa Senhora!... mosquito, aí, fumaceia, no ar! 
Eu era gurizote: teria, o muito, uns dez anos; e andava na companha do meu padrinho, que era capitão, para 
carregar os peçuelos e os avios do chimarrão. 
As cousas da peleia não sei, porque era menino e não guardava as conversas dos grandes; o que eu queria 
era haraganear; mas, se bem me lembro, o meu padrinho dizia que nós estávamos mal acampados, e 
estransilhados, pensando culatrear o inimigo, mas que este é que nos estava nos garrões; não havia bombeiros nem 
ordem, que o exército vinha num berzabum, e que o general que mandava tudo, que era um tal Barbacena, não 
passava de um presilha, que por andar um dia a cavalo já tinha que tomar banhos de salmoura e esfregar as 
assaduras com sebo... 
O meu padrinho era um gaúcho mui sorro e acostumado na guerra, desde o tempo das Missões, e que 
mesmo dormindo estava com meio ouvido, escutando, e meio olho, vendo...; mesmo ressonando não desgrudava 
pelo menos dois dedos dos copos da serpentina... 
Num escurecer, enquanto pelo acampamento os soldados carneavam e outros tocavam viola e cantavam, ou 
dormiam ou chalravam, o que sei é que nesse escurecer o meu padrinho mandou pegar os nossos cavalos; e 
encilhamos até a cincha; e depois nos deitamos nos pelegos, com os pingos pela rédea, maneados: ele, armado, 
mateando; eu, enroscadito no meu bichará, e o ordenança, que era um chiru ombrudo, chamado Hilarião, pitando. 
Eu, como criança, peguei logo a cochilar. 
Amigo! Vancê creia: o coração às vezes, trepa, dentro da gente, o mesmo que jaguatirica por uma árvore 
acima!... 
Lá pelas tantas, ouviu-se cornetas e clarins e rufos de caixa...; mas o som dos toques andava ainda galo-peando dentro do silêncio da noite quando desabou em cima de nós a castelhanada, a gritos, e já nos foi fumegando 
bala e bala!... 
Numa arrancada dessas é que o coração trepa, dentro da gente, como gato... 
— Desmaneia e monta! gritou o meu padrinho; ele que falava, eu e o chiru que já estávamos enforquilhados 
nas ganas. 
E por entre as barracas e ramadas; por entre os fogões meio apagados, onde ainda havia fincados espetos 
com restos de churrascos; por entre as carretas e as pontas de bois mansos e lotes de reiúnos; no fusco-fusco da 
madrugada, com uma cerraçãozita o quanto-quanto; por entre toques e ordens e chamados, e a choradeira do 
chinaredo e o vozerio do comércio, já no cheiro da pólvora e em cima dos primeiros feridos, formou-se o entrevero 
dos atacantes e dos dormilões. 
E cantou o ferro… e choveu bala!... 
O meu padrinho levantou na rédea o azulego: e de espada em punho, o chiru, com uma lança de meia-lua — 
e eu entre os dois, enroscadito no meu bichará — nos botamos ao grosso do redemoinho, para abrir caminho para o 
quartel-general do dito Barbacena. 
Como lá chegamos, não sei. 
A espada do meu padrinho estava torcida como um cipó, e vermelha, e o azulego tinha uns quantos lanhos na 
anca; o Hilarião tinha um corte de cima a baixo da japona, e eu levei um lançaço, que por sorte pegou no malote do 
poncho. 
Mas, varamos. 

No quartel do Barbacena ninguém se entendia. 
45 
A oficialada espumava, de raiva, e um cutuba, baixote, já velho, botava e tirava o boné e metia as unhas na 
calva, furioso, de ralar sangue!... 
Esse, era um tal general Abreu... um tal general José de Abreu, valente como as armas, guapo como um 
leão… que a gauchada daquele tempo — e que era torenada macota! — bautizou e chamava de — Anjo da Vitória! 
Esse, o cavalo dele não dava de rédea para trás, não! Esse, quando havia fome, apertava o cinto, com os 
outros e ria-se! 
Esse, dormia como quero-quero, farejava como cervo e rastreava como índio...; esse, quando carregava, era 
como um ventarrão, abrindo claros num matagal. 
Com esse.. . castelhano se desguaritava por essas coxilhas o mesmo que bandada de nhandu, corrida a tiro 
de bolas!... 
Era o Anjo da Vitória, esse! 

Daí a pouco apareceu um outro oficial, mocetão bonito, que era major. Este chamava-se Bento Gonçalves, 
que depois foi meu general, nos Farrapos. 
Os dois se conversaram, apalavraram os outros e tudo montou e tocou pra rumos diferentes. 
No acampamento estrondeava a briga. 
Já tinha amanhecido. 

Eu andava colado ao meu padrinho, como carrapato em costela de novilho. Por onde ele andou, andei eu; 
passou, passei; carregava, eu carregava; fazia cara-volta, eu também. 
Naquelas correrias, o meu bicharazito, às vezes, enchia-se de vento, e voava, batia aberto, que nem uma 
bandeira-cinzenta... 
O major Bento Gonçalves formando a cavalaria, agüentava como um taura as cargas do inimigo, para ir 
entretendo, e dar tempo à nossa gente de quadrar-se, unida. 
Os castelhanos, mui ardilosos, logo que aquentou o sol tocaram fogo nos macegais onde estava o carretame; 
o vento ajudou, e enquanto eles carcheavam a seu gosto, uma fumaça braba tapou tudo, do nosso lado!...

Então o general Abreu no alto do coxilhão formou os seus esquadrões: o meu padrinho comandava um deles. 
Formou, fez uma fala à gente e carregou, ele, na frente, montado num tordilho salino, ressolhador. 
Oh! velho temerário! Firme nos estribos, com o boné levantado sobre o cocuruto da cabeça, a espada 
apontando como um dedo, faiscando, o velhito ponteou aquela tormenta, que se despenhou pelo lançante abaixo e 
afundou-se e entranhou-se na massa cerrada do inimigo, como uma cunha de nhanduvai abrindo em dois um 
moirão grosso de guajuvira... E deixando uma estiva de estrompados, de mortos, de atarantados, de feridos e de 
morrentes — como quando rufa um rodeio xucro... vancê já viu? — varou para o outro lado, mandou fazer —alto, 
cara-volta! — e mal que reformou os esquadrões, os homens chalrando e rindo, a cavalhada, de venta aberta, 
bufando ao faro do sangue e trocando orelha, pelo alarido, o velho já se bancou outra vez na testa, gritou —Viva o 
Imperador! — e mandou — Carrega! 

E a tormenta da valentia rolou, outra vez, sobre o campo. 
Mas nesta hora maldita, a fumaça maldita nos rodeava e cegava; e mal íamos dando lance à carga — eu, 
folheirito, abanando no mais o meu bichará pra o Hilarião — rebentou na vanguarda e num flanco a fuzilaria, e 
vieram as baionetas... e uma colubrina, que nos tiroteavam donde não podia ser!... 
A nossa cavalaria se enrodilhou toda, fazendo uma enrascada de mil diabos… e enquanto o tiroteio nos 
estraçalhava, que os ginetes e os cavalos caíam, varados, e que, por fim, os próprios esquadrões já iam rusgando 
uns com os outros — aí, amigo, andei eu às pechadas!—enquanto isso... veio uma rajada forte de vento, que varreu 
a fumaça, limpou a vista de todos e mostrou que era a nossa infantaria que nos tinha feito aquela desgraça... 
46 

  Então, por cima dos mortos e dos feridos houve um silêncio grande, de raiva e de pena… como de quem pede 
perdão, calado… ou de quem chora de saudade, baixinho... 

  Lá longe, os castelhanos, enganados, tocaram a retirada. O nosso quartel-general também tocou a retirada. 
Pegou a debandada; dispersava-se a gente por todos os lados, aos punhados, botando fora as pederneiras, 
as patronas; muitos sotretas fugiram de cambulhada com o chinerio... 
Metades de batalhões arrinconavam-se, outras encordoavam marcha. 
Os ajudantes galopavam conduzindo ordens… mas parecia que toda a força ia fugindo duma batalha perdida, 
que não era, porque tudo aquilo era da indisciplina, somentes. 
  O Anjo da Vitória lá ficou, onde era a frente dos seus esquadrões, crivado de balas, morto, e ainda segurando 
a espada, agora quebrada. 

  Campeei o meu padrinho: morto, também, caído ao lado do azulego, arrebentado nas paletas por um tiro de 
peça; ali junto, apertando ainda a lança, toda lascada, estrebuchava o Hilarião, sem dar acordo, aiando, só aiando... 
Deitado sobre o pescoço do cavalo, comecei a chorar. 
Peguei a chamar: 
— Padrinho! padrinho!... 
— Hilarião! Meu padrinho!... 
Apeei-me, vim me chegando e chamando — padrinho!… padrinho!… e tomei-lhe a bênção, na mão, já fria…; 
puxei na manga do chiru, que já nem bulia... 
Sem querer fiquei vendo as forças que iam-se movendo e se distanciando.., e num tirão, quando ia montar de 
novo, sem saber pra quê... foi que vi que estava sozinho, abandonado, gaudério e gaúcho, sem ninguém pra me 
cuidar!... 
   Foi então, que, sem saber como, já de a cavalo, enquanto sem eu sentir as lágrimas caíam-me e rolavam 
sobre o bichará, os olhos se me plantaram sobre o tordilho salino... sobre o coto da espada... sobre um boné 
galoado...  
E o cabelo me cresceu e fiquei de choro parado...e ouvi, patentemente, ouvi bem ouvido, o velho macota, o 
Anjo da Vitória, morto como estava, gritar ainda e forte 
— Viva o Imperador! Carrega! 

O meu bicharazito se empantufou de vento, desdobrou-se, batendo como umas asas... o mancarrão bufou, 
recuando, assustado… e quando dei por mim, andava enancado num lote de fujões... 
Comi do ruim... Vê vancê que eu era guri e já corria mundo...

ass

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