quinta-feira, 14 de maio de 2009

O dia em que bebi com Jânio(II)

Jânio Quadros, Gastone Righi, o colunista e Jomar Morais

Parte 2
Por Augusto Nunes
O estilo do campeão
─ Uísque com gelo, só gelo ─ esclareço enquanto ecoam três batidas enérgicas na porta da casa no Guarujá.
─ Sou eu ─ identifica-se o deputado federal Gastone Righi sem dizer o nome, o vozeirão de ex-locutor de parque de diversões vale como documento.
O ex-presidente Jânio Quadros se alegra ao saber quem chegou. Deposita cuidadosamente na mesa a garrafa de vinho do Porto que acabou de abrir, vai atender e volta de braços dados com a figura imponente: solidamente gordo, cabelos fartos e longos, o rosto emoldurado pela barba espessa, Gastone Righi lembra um caminhoneiro de longo curso que faz bicos em programas de luta-livre.
─ Chegou na hora, meu bem, vai beber o quê?
─ Jânio fica meio meloso quando já decolou, meu pai tinha me contado há muito tempo.
Uísque, responde, depois de um possante “boa tarde!”, o deputado nascido em Santos e janista desde vidas passadas. O anfitrião pede que providencie água mineral e o material de combate: uma garrafa de Chivas, dois copos para uísque (baixos), balde de gelo e um copo de vinho.
─ Dos grandes ─ especifica.
─ Eloá está na cozinha, ela sabe onde encontrar essas coisas.
Sabe mas não quer contar, informam frases truncadas que chegam da cozinha: “…bebeu demais…”, “…tem limite…, ”…’é o fim do mundo…” Gastone insiste e dois minutos depois reaparece com a encomenda nos braços. Todos se servem. O deputado senta-se num sofá branco, Jomar e eu ocupamos as duas poltronas pretas. O ex-presidente acomoda-se na cadeira por trás da mesa sobre a qual se equilibram um busto de Abraham Lincoln, uma estatueta de Abraham Lincoln, um dicionário de Português, um cinzeiro com meio charuto apagado, pilhas de jornais ainda em sacos plásticos, um capacete de revolucionário de 1932 e, agora, um cálice de vinho. Dos grandes.
Jânio já tinha liquidado o primeiro em dois goles. Noto que está de tênis. Tiro o paletó, afrouxo a gravata e ataco o Chivas. A primeira dose desce redonda. Três da tarde, confiro no relógio. A conversa deve ir até as cinco. O regulamento é sucinto e claro: perde quem fica grogue mais cedo, e o intervalo entre cada gole não pode passar de cinco minutos. Com seis copos ganho essa parada, calculo. Com oito, mando o homem à lona. Ninguém aguenta tanto. Nem ele.
Ele toma a iniciativa com um gancho no fígado do governador Paulo Maluf, que não aprecia a idéia de transmitir o cargo ao ex-presidente.
─ Deus me deu um Adhemar de Barros com correção monetária ─ Jânio surpreende Jomar com a brusca mudança de opinião sobre a figura que havia elogiado de manhã e agora, no quarto cálice, está comparando ao velho inimigo que transformou em sinônimo de corrupto.
Ainda não decidiu se será candidato a governador, fico sabendo no fim do segundo copo.
─ Se o for, considero-me imbatível ─ solta a famosa combinação próclise-ênclise.
Gira pelo palco da luta sem sinais de cansaço. Trata de temas variados ─ governo militar, inflação, Leonel Brizola, problemas domésticos ou planetários, biquíni, Alberto Pasqualini, briga de galo, Winston Churchill ─ sem embaralhar o raciocínio nem claudicar no falatório. Termina o quinto cálice. Já vai derrubando o sexto entre comentários sobre governos fortes e governos fracos quando vislumbra um vulto na janela. Interrompe a discurseira, gira a cabeça para a direita, abre um sorriso e ergue a voz:
─ Olha! Parece um capuchinho!
O capuchinho é Pedro Martinelli, que segue disparando flashes como se não tivesse ouvido nada. Corpulento, barba e cabeleira compridas e ruivas, rosto rubro de nascença avermelhado pelo sol do Guarujá, Pedrão parece mesmo um capuchinho, concordo em silêncio. Somos amigos há séculos. Como é que nunca percebi o que Jânio enxergou com tanta nitidez mesmo estando pra lá de Bagdá? E a poucos metros de Marrakesh, deduzo ao ouvir o que está dizendo sem que ninguém tenha feito alguma pergunta sobre o tema.
─ Os Estados Unidos estão em franca decadência. Para substituí-los, está emergindo a China, que aposentará o marxismo e será a grande potência do próximo século.
Coisa de profeta, saberei menos de 30 anos depois. Coisa de maluco, achei naquele instante.
─ Acham que sou louco ─ desconfio de que ele adivinhou o que estou pensando.
─ Responsabilizam-me até pelas calmarias que trouxeram Pedro Álvares Cabral a esta terra.
Termina o oitavo cálice. Começa o quarto copo. Dona Eloá aparece na porta do escritório com um talão de cheques na mão, destaca uma folha e pede ao marido que coloque data e assinatura. A quantia ela vai preencher no supermercado, explica.
─ Você precisa disto para quê? ─ Jânio confirma a fama de sovina.
─ O que é que você acha? Esta casa ficou vazia dois meses e meio─ a paciência de dona Eloá não tem fim.
Ele atende à solicitação e devolve o cheque.
─ Você assinou na data e datou a assinatura ─ a paciência de dona Eloá está perto do fim. ─ Assine outro cheque.
─ Eles aceitam assim mesmo ─ encerra o assunto Jânio.
É agora, decido. Quem confunde data e assinatura não está bem. Empunho o quinto copo grávido de otimismo. Ele empunha o nono cálice com a expressão de quem flutua sobre nuvens profundamente azuis. É a bebedeira, imagino. É a autoconfiança que identifica um grande campeão, descobriria em meia hora.
Era tarde demais.

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