terça-feira, 23 de dezembro de 2014

Natal, nascimento e morte?


CARLOS VIEIRA
“Então nos amaremos e nos desejaremos felicidades ininterruptamente, de manhã à noite, de uma rua a outra, de continente a continente, de cortina de ferro à cortina de náilon  - sem cortinas. Governo e oposição, neutros, super e subdesenvolvidos, marcianos, bichos, plantas entrarão em regime de fraternidade. Os objetos se impregnarão de espírito natalino, e veremos o desenho animado, reino da crueldade, transposto para o reino do amor: a máquina de lavar roupa abraçada ao flamboyant, núpcias da flauta e do ovo, a betoneira com o sagüi ou com o vestido de baile. E o suprarrealismo, justificado espiritualmente, será a chave do mundo”.

Ah Drummond, como você sabia transitar entre o triste, o melancólico, a singeleza da vida, “o sentimento do mundo”, e a ironia fina e também explícita! O que lemos acima é um fragmento de uma crônica do “Gauche”, em seu livro, “Cadeira de Balanço”, editado pela Record, 22º Edição em 2009.

Natal, quantos natais tem uma pessoa? Uns nem os vive, nascem mortos, ou morrem de inanição nesse nosso país ainda subdesenvolvido.; outros já crescidinhos, menores diante da Lei, comemoram roubando para os donos das gangues; alguns recebem uma tímida ceia de alguma organização civil; um outro que conheci, nasceu na meia-noite e foi notícia de televisão; um filho de um empresário bilionário ganhou uma Ferrari, dias depois “desfilando a 180 km de velocidade tirou a vida de um ciclista; Alberto, filho de um político recebeu um belo “papai Noel”: a promessa que seria deputado federal nos próximos pleitos, sem sombra de dúvida, pois seu pai que não era Noel já estava criando uma cidade-satélite que lhe garantiria o eleitorado; o Governo em sua generosidade habitual trouxe em seu “trenó”, aumento da eletricidade, da gasolina, da cesta básica, dos impostos injustos, e sem tristeza, não promete mais para os próximos natais – “O Natal do pré-sal”. “Então nos amaremos e nos desejaremos ininterruptamente...” Meu querido Carlos itabirano, há verdade relativa em suas palavras, mas sua sensibilidade irônica não perdoa o que o velho Freud chamou de “princípio de realidade”.

Quando escrevia essa crônica um livro estava meio escondido por entre outros, uma bela e cruel obra: “Bertolt Brecht  - Poemas 1913 – 1956”, seleção e tradução de Paulo César Souza, Ed. 34, 2000. “Como um aviso dos céus”, papai Noel me soprou para ler um dos poemas de um dos maiores dramaturgos contemporâneos. O poema chama-se: “Toma lugar à Mesa”. Passo a transcrever:

“Toma lugar à mesa, não a preparaste?
A partir de hoje também usará o vestido aquela que o costurou.
Hoje, às doze horas do meio dia
Começa a idade do ouro.
Nós a iniciamos por considerar
Que estais cansados de construir casas e
Nelas não morar. Achamos que 
Agora quereis comer o pão que cozinhastes.
Mãe, teu filho deve comer.
A guerra foi cancelada. Pensamos
Que gostarias assim. Por que, perguntamo-nos
Adiar mais ainda a idade de ouro?
Não vivemos para sempre.”
Proximamente teremos mais uma noite de Natal. Entre tristezas e alegrias, pelo menos algumas horas quem sabe, podemos nos deliciar com a reunião de família, ainda que às vezes se convide algum estranho chato, out, nada a ver com as parcerias, mas paciência, sempre existem pessoas estranhas no seio do “estranho ninho familiar”.

Sem querer parecer espírito de porco, noite de Natal é uma experiência dialética. Explico: nas primeiras horas a estonteante alegria do encontro e a troca dos presentes são fatos implícitos. Após algumas horas, às vezes, aquela harmonia natural começa a se fragmentar: fofocas, brigas explícitas e implícitas entre os familiares; queixas, reclamações, alfinetadas coloridas de inveja e ciúme, indelicadeza com os mais velhos, choros agudíssimos de crianças pequenas que dão crises de birra e falta de educação. Beijos, afagos, carinho nas avós e avôs, existem também; a cunhada reclama da sogra; o estranho não consegue se inserir; uma notícia no pé do ouvido: “você sabia que sua irmã vai se separar? Responde o irmão: “cara, não estraga a festa, deixa de fofocar, estamos numa bela confraternização! “Os objetos se impregnarão do espírito natalino, e veremos o desenho animado, reino da crueldade...”

Para ser sensato, Natal é um momento simbólico de criatividade, de novos nascimentos, de capacidade de repensar o tempo passado, de considerar a Alteridade, de ter esperança de que Cristo não veio para nos salvar – Cristo veio para nos humanizar, verbo meio ausente na atualidade mas necessário para a sobrevivência do Mundo.

O maior presente natalino que podemos receber, nesse momento histórico em nossa Nação é: Educação, moradia, justiça para os que não usam “colarinho branco”, saúde a todos e atendimento aos que morrem na porta do hospital ou na recusa de atendimento, segurança social e individual prevenindo crimes hediondos, e finalmente: vontade política e governamental de empreender reformas e mudanças, caso contrário continuaremos a ter, não “peru assado” e sim “pessoas assadas” pelas balas perdidas, pelos projéteis intencionais, e pela falta de recursos para o mínimo de sobrevivência da população carente, ao contrário da minoria privilegiada do “gigante pela própria natureza”.
Carlos de Almeida Vieira - psicanalista e psiquiatra.     

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