Não ajudou em nada, é claro, a derrota que o governo sofreu no Congresso na primeira votação depois das eleições, quando deputados e senadores puseram a pique o decreto presidencial que criava "conselhos populares" — uma pescaria em água mais do que turva cujo único mérito foi ter morrido antes de nascer. Mas isso é coisa que vem de políticos, espécie humana altamente eficaz na prática de trocar uma posição por outra, dependendo dos benefícios que recebe; sempre é possível fazer amanhã o que não deu para ser feito hoje. O problema, mesmo, é com a massa que ficou do lado de fora — e aí está o motivo mais visível da neurastenia do PT e seus subúrbios em relação ao povo que votou contra a candidata oficial ou não votou nela. Como comprar 51 milhões de pessoas, ou mais ainda? Não dá. Por mais ministérios, estatais e empregos gordos que criem, por mais ONGs que sustentem e por mais contratos de "prestação de serviços" que assinem, nem Dilma nem Lula conseguiriam fechar negócio com tanta gente assim. O que poderia lhes render apoio entre a metade dos eleitores que votou na oposição não é dinheiro, nem emprego com carro oficial e "cartão corporativo"; é uma meia dúzia de mudanças, não mais, na conduta moral dos governantes e no abandono da estratégia de governar o Brasil por meio da empulhação. Mas isso Lula, Dilma e o PT não vão fazer. Não querem, e provavelmente não podem.
Fica travada, assim, a resposta para a pergunta feita na primeira frase deste artigo, o que não parece anunciar um futuro sereno. Os números finais da eleição recomendariam que os ganhadores fizessem alguma tentativa honesta de estender a mão aos perdedores, mesmo porque têm a responsabilidade legal de governar todos os brasileiros. Os 51 milhões de eleitores que votaram em Aécio não perderam a cidadania em 26 de outubro; perderam apenas uma eleição. Mas esse tipo de raciocínio não faz parte do mundo mental do PT. Na verdade, pelo que comprovam os fatos mais recentes, o governo se mostra ansioso em seguir pelo caminho contrário. Dilma, por exemplo, continua sendo Dilma em estado puro. Solicitada numa entrevista a comentar sua derrota em São Paulo, onde recebeu 35% dos votos contra os 65% de Aécio, a presidente tinha pelo menos uma boa dúzia de respostas a dar; preferiu a pior. "Por que você não pergunta sobre meus votos no Nordeste?", devolveu ela. Por que o assunto, no caso, era São Paulo, e não o Nordeste — mas esse tipo de consideração não entra na cabeça de Dilma nem com britadeira hidráulica. Diante da oportunidade de fazer um gesto conciliatório e dizer umas poucas palavras simpáticas aos paulistas, seu piloto automático levou-a direto para a aposta agressiva na divisão do Brasil e dos brasileiros, hoje tão em moda no governo e no seu partido. A presidente, depois da eleição, parece mais irritada do que estava durante a campanha; chegou até a mencionar por alto a palavra "diálogo", mas na vida real seu diálogo é isso que se vê.
Dilma, aí, vai rigorosamente atrás de Lula, homem que tem pouco interesse por atos de generosidade e acredita que as armas políticas mais eficazes são a pregação do ódio, o insulto ao adversário e o esforço permanente para convencer os brasileiros a ser inimigos uns dos outros. São os fatos, e apenas os fatos, que sustentam esse julgamento; podem ser verificados a qualquer momento pelas gravações e vídeos que registram o que o ex-presidente diz regularmente em público. Que tal, quanto a isso, uma seleta daquilo que andou falando na última campanha eleitoral? A favor de sua conduta, Lula tem os resultados, pelo menos até agora; ela serve para ganhar eleições, e no ambiente de derretimento moral da política no Brasil de hoje a única preocupação é fazer o que dá certo. É assim nas campanhas — e é assim nos acertos que vêm logo depois. Diálogo, para Lula, significa negociação de compra e venda; se não dá para comprar o apoio do outro lado. não há conversa possível. Trata-se de linguagem muito bem entendida por quem sabe o preço de tudo e não conhece o valor de nada. Em cima dela, Lula, Dilma e o PT formaram essa "base aliada" que está aí há doze anos — um belo desfecho para a história dos "300 picaretas" do Congresso que Lula denunciou num passado já
distante. Na época, o ex-presidente parecia indignado: é vigarista demais para um Congresso só, dizia ele. Depois que chegou ao governo, não voltou ao assunto. Passou a achar que os 300 picaretas eram uma bênção.
O governo pode ignorar suas obrigações com a metade de um eleitorado que rachou ao meio. Mas não pode fazer de conta, como fez durante a campanha eleitoral, que os problemas da vida real não existem. João Santana, seu chefe de propaganda, não fará a balança comercial dar saldo. Lula até que pode chamar a inflação de "Hero-des", mas ela não vai ligar para isso. Não existe a opção de "des-construir" a dívida pública, que já passou dos 2 trilhões de reais, como fizeram com Marina Silva. Não adianta nada ficar fazendo discursos irados contra os "banqueiros" e "rentistas" quando o dinheiro que ganham (e nunca ganharam tanto como nos governos petistas) vem justamente dessa dívida. Quem a construiu foi o governo, só ele, por gastar mais do que pode; hoje o montante é quase três vezes maior do que era no começo do governo Dilma, e por sua =2— conta o Erário tem de pagar aos credores juros que no ano passado consumiram mais de 40% do Orçamento da União, ou 900 bilhões de reais. É inútil, também, a presidente ficar dizendo que vai "combater a corrupção" ao mesmo tempo em que o seu entorno faz tudo para sabotar o processo judiciário em que se apura a ladroagem em massa na Petrobras — sua última ofensiva pretende derrubar o juiz Sergio Moro, que conduz as investigações. A economia brasileira praticamente não cresceu durante os quatro anos de Dilma; em 2014 crescerá pouco acima de zero, se tudo der certo. Não há no governo nenhuma ideia coerente para mudar isso em 2015 ou em qualquer outro ano.
A presidente Dilma, considerando-se os resultados concretos que obteve em seu primeiro mandato, revelou um gênio realmente extraordinário para governar mal. Não é confortável, diante dessa qualidade de performance, sair de uma eleição com 54 milhões de votos num total de 142 milhões de eleitores. A dificuldade é que os governos petistas, por tradição, pelos instintos políticos de Lula ou por falta de ideias inteligentes, têm se acostumado nos últimos anos a correr para comportamentos agressivos, extremistas e totalitários quando sentem que o jogo complicou. Os sinais que começaram a dar depois da eleição estão prometendo mais do mesmo.
Coluna - J. R. Guzzo |
Revista Veja - 10/11/2014 |
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