domingo, 18 de maio de 2014

Vênia insto para discrepar

João Ubaldo Ribeiro
Acho que não há quem, ouvindo a frase do título de hoje pela primeira vez, não peça que a repitam e, mesmo depois disto, talvez não a compreenda. Eu também demorei a entendê-la da primeira vez, embora me julgasse preparado para destrinchar qualquer anástrofe entre as mais emaranhadas e, no geral, encarar os efeitos formidáveis que a perseguida língua portuguesa ainda tem recursos para obter. Estava assistindo a um debate na velha Faculdade de Direito da Bahia, então escola superior de humanidades, com um elenco de professores estelar. Saía de tudo, inclusive esta frase, de que nunca esqueci. Proferida por um colega piauiense, congelou o salão, enquanto todos paravam para decifrá-la. Quer dizer "insisto em pedir licença para discordar", é claro, mas não teria o mesmo efeito, se dita assim.
O pessoal caprichava e os debates, embora acalorados, obedeciam a regras de etiqueta e continham alusões elogiosas aos adversários, se bem que por vezes ironicamente. Não estou sendo saudosista ou dizendo que antigamente havia mais refinamento ou boas maneiras. Havia muita grossura antigamente e ainda peguei o tempo em que não eram infrequentes notícias sobre como algum jornalista, no interior, havia sido obrigado pelo coronel a comer seu jornal. A repressão nas ruas às vezes era bastante braba e um dia, na Praça Municipal de Salvador, se eu não estivesse usando uma capa de gabardine das antigas, teria sido devorado por um cachorro da polícia, que felizmente se contentou em estraçalhar minha capa, enquanto eu me escafedia pelas escadas da prefeitura acima. Também tomei uma cassetetada no ombro, que me entortou um pouco e me rendeu uns dois dias de glória e solidariedade carinhosa das moças. Isso no meu caso - agitador light e metido a intelectual -, mas, em casos mais sérios, a repressão e o antagonismo eram também sérios.
Mas não havia o mau humor generalizado e a alusão ao ódio, hoje tão disseminados, além da violência gratuita e do desprezo à vida. Tenho lido, aqui e ali, artigos se queixando da mesma coisa. Já pouco se usa a expressão criada por Cacá Diegues, mas as patrulhas ideológicas estão mais ativas que nunca, xingando, difamando, caluniando e ameaçando, às vezes simplesmente porque alguém tem um estilo de vida reprovado por outro. Ninguém mais simplesmente discorda, vai logo xingando e desqualificando o oponente, muitas vezes sem se dar ao trabalho nem de tentar examinar argumentos. A baixaria impõe o tom e não se admite que haja um adversário de boa-fé. O opositor é sempre um agente consciente do Mal e da Mentira, solerte, disfarçado e traiçoeiro, e não é nem ao menos movido por boas intenções. Não há como compreendê-lo ou recuperá-lo para a Verdade e o mais certo é liquidá-lo.
O estado é indecentemente confundido com o governo e o governo age como se fosse o dono do estado. Quem se opõe ao governo se opõe ao estado e pode, portanto, ser qualificado de inimigo da pátria e das instituições. As palavras são despidas de seus significados conhecidos para assumirem outros, de difícil ligação com a realidade. Elite, esquerda, direita, tudo isso é definido arbitrariamente, segundo o interesse de quem usa estas palavras. Magistrados do Supremo batem boca em público, dão entrevistas o tempo todo, quase se engalfinham com jornalistas. O Congresso, para quem ouve e lê as notícias, parece um covil de bandidos, antro das piores calhordices, exemplo do privilégio, do mau desempenho de atribuições e do desgoverno. O Executivo hoje não passa de um escritório eleitoral rodeado de assombrações.
Somos agora uma sociedade em que é cada vez mais fácil matar trivialmente. Matamos com sempre maior desenvoltura, numa demonstração clara de que o desarmamento da população não era solução para o problema e antes talvez contribua para seu agravamento. É possível, como já aconteceu e acontece, matar uma pessoa, levar arma e cadáver à polícia, confessar tudo e sair para responder em liberdade ao longo processo, que muitas vezes resulta em penas leves e multiplamente atenuadas. Para matar um desafeto sem incorrer em grandes aborrecimentos, basta ao brasileiro comum encher a cara, pegar o carro, atropelar a vítima e contar um par de mentirinhas na delegacia. Nesses casos, quase nunca o assassino chega a passar qualquer tempo na cadeia.
A morte é banal e se morre o tempo todo, no corredor de um hospital público, baleado na rua ou num deslizamento de terra. Ficou tão corriqueiro matar que agora, depois de fazer o assalto, levando tudo sem encontrar resistência, o assaltante mesmo assim mata a vítima, quase como quem cumpre uma formalidade ou praxe. E talvez tanta facilidade tenha gerado monotonia e necessidade da adoção de novos elementos. E, assim, torturam-se as vítimas, incinera-se gente viva, enterra-se gente viva, esquarteja-se gente e, todos os dias, praticam-se crimes inacreditáveis, sem que ninguém se espante mais.
Também não se passa mais dia sem uma ação coletiva violenta, destrutiva e criminosa. A multidão sai, quebra e incendeia ônibus, depreda e saqueia lojas, faz linchamentos com uma crueldade estarrecedora, estabelece tribunais instantâneos e aterrorizantes, com um efeito multiplicador sobre a desordem geral e o desrespeito acintoso à lei e ao estado. Por exemplo, diz a lei que o motorista que atropela deve prestar socorro e pune aquele que não a observa. Mas, se hoje em dia o motorista parar, o provável é que leve um pontapé na cabeça no instante em que descer do carro e se curvar sobre o atropelado.
Não é bom viver num clima assim. Não é bom que nos tornemos um povo assim de uma vez por todas e que não confiemos mais em nada, não é bom que não consigamos conviver com a divergência e a diferença e tenhamos como norma a intolerância. Discrepemos, antes que seja tarde.

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