sexta-feira, 14 de março de 2014

O HOMEM QUE AMAVA OS CACHORROS

Leonardo Padura e a crônica das mudanças em Cuba



Escritor fala sobre seu romance, que tem Trotski como personagem, e das transformações da sociedade cubana nas últimas décadas. Ele afirma que falar sobre o líder comunista seria impossível no passado e crê que reformas em curso no país levarão a uma maior abertura do sistema político


Por Leonardo Cazes

Trotski é uma das figuras políticas mais polêmicas do século XX e foi transformado por Stálin no grande inimigo da revolução. O que mais lhe interessou nele?

No caso de Trotski, houve vários elementos que provocaram meu interesse, antes mesmo de pensar em escrever um romance que o tivesse como personagem. A primeira razão foi o desconhecimento. Em Cuba, não nos permitiam conhecer quase nada de Trotski e a única coisa que sabíamos é que tinha sido o grande inimigo da revolução, o grande traidor dos ideais bolcheviques. E não sabíamos mais nada, porque seguíamos a mesma política da União Soviética. Isso despertou a minha curiosidade. Em 1989, na primeira vez que estive no México, pedi para um amigo me levar à casa de Trotski em Coyoacán. Foi um lugar que me provocou uma grande comoção. Parecia uma prisão, uma fortaleza onde a mão de Stálin foi capaz de chegar para assassiná-lo. Nos anos da perestroika (política de abertura adotada pelo presidente Mikhail Gorbachev) e depois do fim da União Soviética, começou a circular mais informação sobre ele e descobri quem tinha sido esse personagem.

O livro trata de de dois personagens reais, Trotski e seu assassino, Ramón Mercader. Quais os limites entre fatos históricos e ficção no romance?

Trotski é um personagem histórico muito importante, um homem que está no centro da história do século XX, então fiz uma pesquisa para reconstruir da maneira mais fiel possível os acontecimentos da sua vida e das pessoas próximas a ele. Tudo que se conta no livro sobre Trotski está fundamentado. Pode haver interpretações diferentes de alguns momentos históricos, mas a narrativa sempre parte de fatos documentados. No caso de Mercader não é assim. Há muito mais especulação, até porque não há tanta informação disponível como há sobre Trotski.

No livro o senhor descreve Ramón Mercader de uma maneira bastante humana. Era este seu objetivo?

Sim. Mercader era um militante comunista, um lutador antifascista como outros milhões que havia na Espanha e na Europa nesse período tão complexo que foram os anos 1930. Ele era um homem que estava participando da Guerra Civil quando foi selecionado pelos órgãos de inteligência soviéticos. Este homem era um lutador normal e foi convertido em outra pessoa. Essa outra pessoa é quem vai ter a responsabilidade de assassinar Trotski no México em 1940. Eu queria mostrar como muitos militantes comunistas de boa-fé, acreditando que cumpriam uma exigência histórica para o desenvolvimento e triunfo da ideia socialista, chegaram ao fanatismo e até ao assassinato. Não só no caso de Mercader, mas também de muitos outros.

O senhor considera este o seu livro mais político?

Eu prefiro não escrever sobre política, prefiro que a política esteja no subtexto e nas situações da história. Nos romances policiais e nos romances históricos que escrevi há possíveis leituras políticas. Já em “O homem que amava os cachorros” a política bateu na porta, abriu e entrou sem me pedir permissão. Um romance em que aparece um personagem como Leon Trotski, é claro que terá um conteúdo político muito forte porque ele era um homem que vivia a política o tempo todo.

Trotski não é uma figura popular em Cuba e, no livro, o senhor é bastante crítico ao tratamento dado a ele pelo stalinismo. O senhor teve problemas por conta dessa abordagem?

Felizmente não. Nos anos 1970, não teria me ocorrido escrever um romance deste tipo, era impossível que isso passasse pela mente de um escritor cubano. Nos anos 1980, se eu quisesse escrever esse romance teria muitos problemas. Possivelmente o livro não seria publicado em Cuba e teriam me expulsado do meu emprego. Nos anos 1990, tampouco teriam publicado o livro. Mas as coisas vêm mudando aqui e felizmente este livro teve duas edições, pequenas mas que circularam muito, e ganhou o prêmio da crítica em 2010. Foi também o livro decisivo para que me dessem, no ano passado, o Prêmio Nacional de Literatura, o mais importante do país, pelo conjunto da obra. Foi a primeira vez que um escritor da minha geração ganhou esse prêmio.

Nas suas obras, o senhor retrata o país sem rancor nem ufanismo, falando abertamente sobre seus problemas. O senhor se considera um cronista da vida no país hoje?

A literatura tem liberdade para se mover com interesses estéticos e sociais muito diversos. O jornalismo existe para testemunhar e analisar uma realidade. Muitas vezes o jornalismo em Cuba não fez isso e deixou esse espaço vazio. Por isso a literatura cubana, sobretudo o romance e o conto, substituiu o jornalismo ao falar sobre a realidade. Eu faço essa crônica, mas com o cuidado de que ela não se converta numa literatura doméstica. O que estou tentando fazer nos meus romances é contar o crescimento e a frustração da minha geração. Crescemos acreditando num projeto social e num futuro melhor e, no momento em que chegava o futuro, a nossa sociedade praticamente se desintegrou (nos anos 1990). Fomos obrigados a buscar alternativas de sobrevivência. Eu fui um sortudo que consegui ganhar a vida com a literatura, mas a maioria teve que buscar outras alternativas. Por isso Havana está cheia de taxistas que são engenheiros e tantas pessoas capazes saíram de Cuba. Faço a crônica desse desencanto, da derrota de uma geração e como um projeto não cumpriu as expectativas criadas em torno dele.

O senhor poderia falar sobre os novos escritores que surgem em Cuba?

Há uma nova literatura em Cuba. Muitos escritores jovens estão fazendo uma literatura de acordo com os códigos modernos de comunicação e seus interesses. No entanto, não tenho condições de avaliar a qualidade desses autores. De qualquer modo, pelo que li, é uma literatura muito irreverente, que busca romper com conceitos literários que foram muito utilizados no passado.

Muitos escritores da sua geração deixaram Cuba. Por que o senhor decidiu permanecer no país?

Há lugares que sempre digo que gostaria de viver por um tempo. Quando digo que gostaria de viver um tempo, não creio que consiga escrever ali. Eu necessito da atmosfera, da relação entre as pessoas, das histórias de vida de Cuba. Sou fundamentalmente um escritor cubano. Há três anos tenho cidadania espanhola, mas para escrever preciso dessa relação com meu país. Sou um homem muito estranho nesse momento da História porque vivo na mesma casa onde nasci, onde meu pai e meu avô viveram. É um lugar com o qual tenho uma relação não somente intelectual, mas também sentimental muito forte e é o lugar onde me sinto melhor para escrever. Essa é uma das razões pelas quais não saí de Cuba. A outra é que houve um momento em que o que eu ganhava com meus livros e meu trabalho jornalístico me permitiam viver em Cuba, mas não no exterior. Para qualquer escritor, dispôr dos meios para escrever em tempo integral é um grande privilégio. Tive esse privilégio aqui e quis aproveitá-lo.

Desde que Raúl Castro assumiu a presidência, algumas reformas começaram a acontecer. As mudanças já são efetivas na vida dos cubanos?

Sim e não. A sociedade cubana está mudando, estão ocorrendo mudanças econômicas pequenas, mas que são relevantes. Há mudanças sociais, algumas importantes como a possibilidade de poder viajar livremente para o exterior, algo que não existiu durante 50 anos. Se fizermos uma lista de todas as mudanças que ocorreram nos últimos cinco anos, veremos que são muitas pequenas mudanças que, de alguma maneira, começam a formar uma grande mudança. No plano político, a estrutura do país continua sendo a mesma, mas no âmbito econômico começou a mudar, no social também, e essa soma de mudanças econômicas e sociais mais cedo ou mais tarde vai provocar mudanças políticas. Hoje, apesar de continuar existindo um sistema de partido único, o Partido Comunista, as pessoas têm muito mais liberdade de expressão do que tinham há alguns anos. Por exemplo, que um romance como “O homem que amava os cachorros” seja publicado em Cuba, ganhe prêmios e que se fale dele seria impossível em outros anos. Há alguns meses, um músico cubano bastante popular pediu mudanças políticas e eleitorais em Cuba. Isso era impossível. Cada vez mais há espaços de expressão.

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