sábado, 26 de maio de 2012

‘Coisa Nossa’


 Por Fernando Gabeira

PUBLICADO NO ESTADÃO DESTA SEXTA-FEIRA

A mansão de Sergio Cabral em Mangaratiba
Desaparece, progressivamente, o espaço de uma filosofia solar que nos encarava como pessoas dotadas de uma confiança natural diante do desconhecido. E o tempo em que acreditávamos na sua palavra, exceto se tivéssemos alguma razão especial para duvidar ela.
Vivemos outra era, tão bem expressa pelas novelas da Globo e pelos reality shows. O que ensinam eles? Segundo Zygmunt Bauman, a mensagem é clara: a vida é um jogo duro para pessoas duras. Cada jogador joga por si próprio, mas a fim de obter certos resultados é preciso cooperar. O fundamental é tirar os adversários do jogo: primeiro, os que competem diretamente; em segundo lugar, os aliados ocasionais, depois de extraída sua última gota de utilidade.
Os outros são antes de tudo competidores. Estão sempre tramando, lançando cascas de banana, cavando buracos, montando armadilhas para nos fazerem tropeçar e cair. Nesse sentido, nada mais próximo de um reality show que a CPI do Cachoeira. Nela, como no reality show, a câmera e seus movimentos desempenham papel essencial.
No Big Brother, ela desvenda movimentos rítmicos sob o edredom; na CPI, escrutina outras superfícies digitais, a tela de um telefone celular, por exemplo. A frase que a câmera do SBT captou no telefone do deputado Cândido Vaccarezza é de uma clareza invejável: “Não se preocupe, você é nosso e nós somos teu”. A CPI do Cachoeira não é apenas regida pela câmera, mas sua filosofia, na frase de Vaccarezza, é a de um reality show, um jogo de “nós contra eles”. Quando surgiu, com tantas promessas de vingança, eu a chamei de CPI do “ai se eu te pego”.
Num reality show, Vaccarezza iria para o paredão. No entanto, ele prestou um serviço. A blindagem que armou para o governador do Rio, Sérgio Cabral, não é de aço temperado, mas de um latão que mais expõe do que protege. Uma frase no monitor de cristal líquido desnudou o companheiro que queria encobrir.
Sou suspeito em tudo o que falo sobre Cabral. Fomos adversários nas duas últimas eleições. A essência dessa disputa, na visão dos estrategistas da esquerda, é o choque do proletariado em ascensão contra a burguesia decadente. Cabral faz o papel do glorioso proletariado e eu, o da burguesia decadente. Sua primeira vitória, em 2008, foi comemorada “no melhor Alain Ducasse do mundo”, ao lado de um grande doador de campanha, o dono da Delta, Fernando Cavendish. A segunda foi mais fácil porque envolvia o interior e deve ter comemorado perto de casa, no Antiquarius.
Ao longo da campanha de 2010 ofereci aos jornalistas evidências de que se travava uma guerra suja na internet. Seu lado mais visível eram sites caros com o objetivo único de ridicularizar o adversário. Mas o lado subterrâneo era a contratação de empresas especializadas que inundavam a rede com comentários a seu favor. A divulgação dessas manobras não teria nenhuma importância no favoritismo de Cabral. Mas era um alento para pessoas que se veem bombardeadas por mensagens negativas na internet e acham que o mundo está contra elas.
Às vezes, essas campanhas são feitas por empresas que acionam seus robôs. Contestá-las é tão inútil quanto discutir com uma gravação ao telefone. O mérito da frase de Vaccarezza foi o de revelar como Cabral teme responder a perguntas elementares que talvez não estejam diretamente ligadas a Cachoeira. Mas certamente estão ligadas à Delta e a seus métodos de corrupção de políticos.
Em torno das placas de cobre e zinco com que Vaccarezza envolveu Cabral há uma blindagem muito mais poderosa, de um aço mais fino. Só ela poderia ter tornado possível que, ao cabo de seis anos de governo, Cabral nunca explicasse suas viagens. No princípio tende-se a supersimplificar a blindagem com o fato de o governador gastar milhões em publicidade. Mas a liga é muito mais complexa no aço que o blinda. Nela há componentes subjetivos, como o medo da Globo da vitória da oposição, a vontade de fortalecer uma política de segurança com êxitos pontuais.
Depois do escândalo das fotos de Paris, repórteres descreveram o paraíso do condomínio de Cabral em Mangaratiba e concluíram o texto com uma cena lírica: o governador e a primeira-dama oferecendo carona aos vizinhos, numa tarde de chuva. Não perguntaram quanto custou sua mansão. E ele não teria outra resposta: R$ 200 mil. Foi o que declarou ao TRE como candidato. Ao questionar esse valor, tive como resposta uma tentativa de processo penal. Acusação: má-fé.
Cabral invalidou nosso programa com imagens em que cantava num palanque ao lado de líderes da milícia. Retirou do ar um texto que dizia ser ele amigo de Cavendish e precisávamos estar atentos ao que fariam no Maracanã. Felizmente, não prosperou no TRE a acusação de má-fé: expressei uma dúvida e ela é a antítese da fé, boa ou má. Certas coisas nem juízes amigos podem determinar.
Foi tanta a proteção a Cabral que ele passou dos limites. Uma tragédia na Bahia e as imagens de Paris começam a corromper o aço que o protege. Acontece que a CPI do “ai se eu te pego” se tornou a CPI do “vamos recuar os zagueiros”. Entraram na retranca. Não convocaram governadores, fogem da Delta como o diabo da cruz.
Cabral está marcado por perguntas não respondidas e vai conviver com elas por muito tempo. E a CPI, de tanto evitar o tema Delta, acaba se enrolando nele. No início era apenas Cachoeira. Depois a Delta, mas só a do Centro-Oeste. Com as evidências de que o dinheiro clandestino tinha origem e autorização na matriz da empresa no Rio, só gente muito sem-vergonha tem coragem de restringir as investigações. E essa gente sem-vergonha é maioria esmagadora.
O único consolo que destinam a si próprios e a Cabral é o fato de que tudo repercutiu na classe média, não chegou aos mais pobres. A desinformação é a esperança do PT de Cabral e de Cabral do PT. No passado, a esquerda ao menos se dizia aliada das luzes. Hoje, no Brasil, sonha com as trevas, bons advogados, marqueteiros que fazem do limão uma limonada e legiões de robôs para insultar os adversários. Coisa Nossa.

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