sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

Ah, a água é a base da vida.

Celso Arnaldo: ‘A supergerente que espanca projetos que não param em pé afaga a obra bilionária que não consegue fazer a água correr deitada’

 Celso Arnaldo Araújo
A fala árida de raciocínios, no vídeo cínico, se inicia com uma caudalosa platitude. Para que serve a transposição do rio São Francisco?
“Garantir a base da vida, que é a água”.
Não diga!! Então aquelas pistas de cimento no meio da caatinga não eram parte de um novo circuito da Fórmula 1?
O truque é velho. Dilma herdou o artifício malandro de Lula: para impressionar o povo e a imprensa com uma obra que não existe e nunca existirá ou com uma que começou mas parou no caminho por incúria ou má-fé, fale sempre, ou de novo, da importância da obra, de como ela mudará a vida das pessoas. E lá vem Dilma enfatizar a importância que seu governo dá à obra abandonada por seu governo:
“Eu acredito que uma das obras mais significativas desse pedácio (sic) do século que estamos vivendo é essa obra. Porque ela cria condições para você tê uma agricultura diferenciada, numa região que tem uma característica que é a seca, né, você podê irrigá é um grande ganho”.
Dilma não percebe, mas ela soa como alguém falando do assunto pela primeira vez, anunciando uma ideia nova e boa, que nunca saiu do papel — não de uma obra até aqui fracassada, por incompetência de seu governo, que atenta contra os interesses da população a quem deveria beneficiar. Dessa declaração só se aproveitam duas coisas:
*Há seca no Nordeste
*Com água seria melhor
Prossegue:
“E, pra mim, nessa fase de governo, acompanhá como essa obra está se desdobrando é um dos meus assuntos mais fundamentais”.
Desde quando o estado de abandono do conjunto da obra da transposição do Velho Chico é assunto fundamental de Dilma? Só depois da denúncia da Folha, em dezembro? Nos 12 meses necessários para a desolação se desdobrar ao ponto atual — alojamentos depredados e saqueados, canais artificiais tomados pelo mato e já se desfazendo pela erosão – surgiu na caatinga uma faceta artificial, de concreto e ferro, da secular seca nordestina, totalmente criada pelo homem. Ou pela mulher.
PALMADELA NO BUMBUM
Na lenda da supergerente sem cabeça, alardeada com medo e reverência por seus áulicos, a mulher que dá show em múltiplas competências técnicas e é feroz no zelo com o dinheiro público costuma “espancar” projetos que “não param de pé”. Ao assumir a Educação, o ministro Mercadante ensinou a seu sucessor na pasta da Ciência e Tecnologia que, para atender ao padrão Dilma de qualidade, um projeto só fica de pé se o ministro mobilizar o trabalho concentrado e diuturno de toda uma equipe de técnicos do mais alto gabarito. Erguido o projeto, é preciso também passar à presidente um prazo exequível – e aí de quem não cumpri-lo e no rigor de cada centavo. Dona Dilma estará de ampulheta e calculadora em punho. Se um grão de areia chegar atrasado ou um cêntimo for acrescentado à tabela de custos, aí de você. Fique certo: tudo será discutido por ela, ao detalhe financeiro da nona casa decimal. Ah, não tente enganá-la: ela acompanhará tudo online, lance por lance.
O escândalo do São Francisco faz a transposição definitiva dessa mitologia para o terreno da empulhação mais deslavada. O megaprojeto de interligação, só tendo parado de pé nos palanques de Lula e no empenho de quase sete bilhões de reais, ainda não fica nem deitado – teima em cambalear como um ectoplasma da crueldade da máquina petista. A água que refrescaria a vida de 12 milhões de nordestinos em 390 municípios de quatro estados, interligando o grande rio a cursos temporários do semiárido por meio de canais artificiais, ainda está muito longe de sua primeira gota. O que já escorreu, abundantemente, foi o dinheiro destinado às empreiteiras. Desde 2007, quando “Dom Predo III” deu início à obra, com os projetos avalizados pela então toda poderosa chefona da Casa Civil, os custos já subiram mais de 50%. E a obra está completamente parada há mais de um ano em quatro dos seis lotes. Tudo abandonado – e online, para quem quiser ver.
Ao longo do ano passado, a maioria das construtoras simplesmente fechou seus canteiros e dispensou empregados, alegando que os projetos só contemplavam o arroz-e-feijão da obra, eram básicos demais para a complexidade da transposição – e isso só foi percebido quando pisaram na caatinga. No vídeo, naquela sua língua arrevesada, Dilma admite mais ou menos isso. Faltaram projetos – e não era nem o caso de terem ou não levado a primeira palmadela no bumbum: eles não foram nem concebidos. Serão agora.
Ao longo de todo esse ano de obras paralisadas, nenhum repórter da mídia amestrada foi pautado a perguntar pela transposição – como ninguém questionou, nem remotamente, a promessa das 6 mil creches. A população que seria beneficiada pelas abundantes águas do Velho Chico também não foi ouvida e agora, depois da passagem de Dilma pelo cenário deserto, alguns reclamam que, além de a água nova não ter chegado, a velha, que era pouca, sumiu – pela inativação de alguns riachos locais.
Aparentemente, Dilma não sabia de nada. Para ela, ali já jorrava água como nas fontes do Fontainebleau, em Miami. E, ao saber que não era nada disso, não parece ter subido nas tamancas – seu estilo apregoado. Evoluiu no caso com sapatilhas de cristais. O ministro Fernando Bezerra, a quem cabe a supervisão da megaobra, não só foi mantido na pasta depois de sucessivas denuncias de outra natureza como foi premiado com a missão de executar toda a reengenharia da fase “agora vai” da bilionária transposição, repactuando contratos, fazendo aditivos e complementos – cestão de negociações com empreiteiras que o deixa mais feliz que pinto no lixo. Nem Deus e o Diabo na Terra do Sol hão de saber o que se passou nessa “renegociação” de contratos de que eles falam tanto no vídeo. Dilma, por sua vez, tem uma dívida de gratidão com a transposição do rio São Francisco: deve ao projeto boa parte dos votos que teve no nordeste e que a elegeram.
Por isso ninguém melhor do que a própria supergerente para pôr a transposição de pé novamente, depois do violento espancamento que a obra sofreu da realidade da vida. Louve-se a coragem da responsável final pela desídia e pelo desperdício em se apresentar como a redentora do projeto – como se até aqui a obra de farinha pertencesse a outro governo.
Mas e a água?
Ah, a água é a base da vida.

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