quinta-feira, 4 de agosto de 2011

Luan Santana e Chico Buarque


Então vamos lá: mais um pouco de Chico Buarque e Luan Santana, agora com a ajuda de Umberto Eco

Eu sou fascinado por correntes de protesto, de opinião, gente organizada que entra no blog para rosnar contra isso e aquilo. E, como alguns já repararam, esse tipo de coisa só me assanha a sede, não é mesmo? Afirmei ontem que Luan Santana, em certa medida, representa um Brasil superior àquela canalha que fica mamando nas tetas do estado, arrancando dinheiro dos pobres, via Lei Rouanet, para vender suas metáforas mixurucas, como se elas fossem artigo de primeira necessidade dos brasileiros. E, claro, lá veio a turma contestar o que eu não escrevi, a saber: “Que Luan Santana é superior a Chico Buarque”.
Não escrevi, mas não estou dizendo que seja inferior, não. Eles são diferentes e cantam a públicos distintos. O povão, a quem o colecionador de Jabutis sempre tentou vender a sua “revolução socialista”, ouve Luan. Isso não qualifica obra de ninguém, claro! Mas o esquerdista que serve de modelo aos intelectuais do complexo Pucusp é o “intelectual” Chico Buarque, não o pop-sertanejo Luan Santana. E, de resto, não tenho preconceito de nenhuma natureza. Aliás, sou caipira, todo mundo sabe. Dia desses, ao telefone, Gerald Thomas mangou dos meus “erres” interioranos, que até achou simpáticos. O garoto canta bem no seu gênero, e noto que é patrulhado por certo bom-gostismo vigarista, alimentado pela falsa profundidade.
Há mais: o samba reformado de Chico não diz quase nada a, calculo, uns 70% dos brasileiros. Milhões de nativos compartilham outra metafísica popular, que é a sertaneja. Já cansei de ler que “fulano é bom porque renovou o samba”. Isso é, por si, um valor? Por quê? O Brasil deve ser o único país do mundo em que a música popular foi privatizada pelos intelectuais da contestação ou por especuladores da suposta alma do povo. E, bem, não custa notar:  ”Como é bom poder te amar!” será sempre superior a “amar uma mulher sem orifício”. A primeira prática serve ao menos à reprodução do capital, não é mesmo?
O Brasil continua, em larga medida, a ser um país de nhonhôs, de aristocratas, de fidalgos, de intocáveis. Rodrigo Levino, na VEJA Online, foi dos poucos com coragem para apontar, num texto pra lá de respeitoso, a  ruindade do novo disco de Chico Buarque. No mais, o que se viu foi elogio haurido das rebarbas do mito — apelando, como afirmei, à tal falsa profundidade.
Umberto Eco tem um texto delicioso sobre a linguagem incompreensível dos catálogos de exposição de arte, publicado no Brasil numa coletânea de artigos intitulada “Viagem na Irrealidade Cotidiana”. Digamos que o crítico tenha de falar sobre a obra de Proscittini, um artista hipotético, que “há trinta anos pinta fundos ocre e, por cima deles, no centro, um triângulo isósceles azul com a base paralela à borda sul do quadro, à qual se sobrepõe, em transparência, um triângulo escaleno vermelho, inclinado na direção sudeste em relação à base do triângulo azul.” Muito bem. O que dizer? Eco sugere algumas saídas impagáveis. Uma delas é esta:
“A interpretação política. Observações sobre a luta de classes, sobre a corrupção dos objetos conspurcados por sua transformação em mercadoria. A arte como revolta contra o mundo das mercadorias. Triângulos de Prosciuttini como formas que recusam ser valores de troca, abertos à inventiva operária, expropriada pela rapina capitalista. Volta a uma idade de ouro, ou prenuncio de uma utopia, ou sonho de uma coisa.”
Entenderam? Mas há outras vertentes interpretativas, como esta:
“Naturalmente, o triângulo azul atravessado pelo triângulo vermelho é a epifania de um desejo que persegue um outro, com que jamais poderá identificar-se. Prosciuttini é o pintor da Diferença, ou melhor, da Diferença na Identidade. A diferença na identidade encontra-se também na relação ‘cara-coroa’, numa moeda de cem liras, mas os triângulos de Prosciuttini se prestariam igualmente para que neles fosse reconhecido um caso de Implosão, como, por sinal, também nos quadros de Pollock e na introdução de supositórios por via anal (orifícios negros). Nos triângulos de Prosciuttini, há, contudo, também a anulação recíproca de valor de uso e de valor de troca.”
A obra que se daneEco ironiza, naturalmente, aqueles que deixam a obra de lado e passam a fazer da própria crítica um monumento à mistificação — já que é obrigatório falar bem de Prosciuttini, afinal de contas.
Muito bem. Li, outro dia, um tanto estarrecido, a crítica que Arthur Nestrovski, diretor artístico da Osesp (um nomão!), fez do novo disco de Chico Buarque. Lembrei do texto de Umberto Eco. Foi publicada no Estadão, que nos informa tratar-se de uma versão ampliada da apresentação que o crítico fez do CD do cantor. Em suma, trata-se de uma variante espichada de um release publicada em jornal. Ao menos o aviso está lá. Nestrovski não se aperta com o seu Prosciuttini de olhos glacuos (íntegra do texto aqui). Escreve sobre a obra:
“No extremo oposto do CD, na penúltima faixa que espelha esta segunda, a própria canção se recria, ou se rouba, agora em forma de irresistível samba, ‘Barafunda’: ‘Era Aurora/ Não, era Aurélia/ Ou era Ariela/ Não me lembro agora…’ E quem será que está ali cantando, nessa canção em que mulheres apaixonantes do passado - incluindo, impossivelmente, a Ariela de Benjamin - vão se confundindo com grandes craques de futebol, em lembranças mal desfiadas que também abrem espaço para fulgurações da História e exultações de carnaval?
Alguém tem dúvida? Só pode ser aquele campeão do esquecimento seletivo, o inesquecível ancião Eulálio, de Leite Derramado, cujo monólogo vê-se agora roubado e transformado em samba-do-crioulo-doido, em que se cruzam paixão, futebol e política. Mas este é um Eulálio feliz, reencarnado em Elza Soares (já que a canção cita diretamente ‘Dura na Queda’, escrita para Elza) e com direito até a uma aparição da musa Maristela.
Em retrospecto, a forma do disco se desenha assim, em espelho. São oito canções de amor, de “Rubato” (que alude a Budapeste) a “Barafunda” (que evoca Leite Derramado).
Quem acompanha sabe: o crítico citou aí os livros de Chico Buarque e se entende, então, que um dos valores da obra do cantor é remeter à do escritor, de sorte, então, que citar-se passa a ser, em si, uma virtude. O crítico gostou especialmente de “Meu Querido Dário”, aquela da “mulher sem orifício” porque, atenção!, a música é “entoada por um personagem que entra de cara para o acervo das grandes criações do Chico, captando disfunções sociais do Brasil com uma antena que só ele tem.” Ou, para voltar a Umberto Eco, “a arte como revolta contra o mundo das mercadorias; triângulos de Prosciuttini como formas que recusam ser valores de troca”.
Volto ao pontoMeus queridos, eu já passei há muito do ponto de referendar unanimidades para não parecer esquisito ou de contestá-las necessariamente para me fazer de diferente. A segunda postura é típica dos jovens em busca de espaço — não é o meu caso —, e a primeira, dos coroas covardes: idem; meio coroa sim; covarde não. Se bem que já vai longe o tempo mesmo da rebeldia juvenil; a molecada hoje em dia, quase sem exceção, se comporta como mera despachante do pensamento politicamente correto. Os de 18, com freqüência, estão mais velhos do que os de 50…
Eu não tinha feito uma avaliação estética de Luan Santana. Só disse por que, numa pegada puramente econômica, ele representa um Brasil mais honesto, mais dinâmico, mais decente, mais empreendedor, do que os pilantras que ficam mamando nas tetas do estado, montando shows, fazendo discos e criando “arte” com dinheiro dos pobres. Mas também não estou dizendo que ele esteja abaixo de algumas reputações ditas “superiores” da cultura popular.
Não é difícil desmontar, como se vê, a falácia intelectual de certas leituras supostamente doutas da obra dos supostamente doutos. Sem contar que a balança comercial do Brasil caipira é superavitária! Eu adoro que me provoquem. Pode vir mais. Eu cedo a certas provocações.
Por Reinaldo Azevedo

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