quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

Janer Cristaldo

KAFKA EXPLICA BRASIL
Em meus dias de Direito, em uma aula de Processo Penal, comentei:
- Parece coisa do Kafka.
- Kafka? – me perguntou o professor -. É aluno desta faculdade?


Isto ocorreu no Curso de Ciências Jurídicas e Sociais, da Faculdade de Direito de Santa Maria. Juro. Mas meu professor não estava exatamente longe da verdade. Kafka se formou em Direito, trabalhou algum tempo como advogado e – não por acaso – escreveu O Processo.
Para encurtar a conversa, faço minha a síntese proposta pela Bompiani. Um dia, ao despertar na pensão em que vive, o empregado de banco Josef K. descobre dois indivíduos vestidos com um extravagante uniforme que dizem ter vindo para prendê-lo, em nome de um misterioso tribunal, notificando-o que está sendo preparado um processo contra ele. Não lhe revelam o crime cometido. No entanto, não será uma verdadeira detenção: poderá seguir ocupando-se de seus negócios e somente de vez em quando receberá uma citação para apresentar-se aos interrogatórios. Mal lhe ocorre a idéia de que aquilo fosse uma piada preparada por seus colegas de escritório, precisamente naquele dia, quando completava 30 anos. De uma maneira vaga, K. sente toda a gravidade da desgraça que lhe caiu sobre os ombros.
Com certa arrogância, aceita o processo, vai às audiências, justificando para si e para os demais seu comportamento com a necessidade de rechaçar a acusação caluniosa e esclarecer, em interesse de todo cidadão pacífico, a corrupção e a imoralidade da magistratura que pretende julgá-lo. Mas os primeiros contatos com a gigantesca e misteriosa organização dão a K. um escalafrio de terror e a medida de sua impotência.
Logo não consegue pensar em outra coisa. Descuida de seu trabalho no escritório para passar longas horas perdido no exame das várias possibilidades de salvação que aparentemente lhe são oferecidas, ou corre de um lado a outro da cidade para confiar sua defesa a um advogado ou para buscar a ajuda de qualquer pessoa que conheça os juízes encarregados de seu processo.
Quando se dá conta de que não existe nenhum intermediário entre ele e seu processo, que tudo que não é ele mesmo é processo, e mais ainda, que também ele mesmo chegou a fazer parte do processo, então já não lhe resta outro remédio senão aguardar a execução de uma condenação já pronunciada. Mutatis mutandis, isto ocorreu há pouco no Rio Grande do Sul. Transcrevo a notícia da Folha de São Paulo:


No dia 30 de setembro de 2002, um caseiro gaúcho conhecido como "Garnisé" aproveitou a pouca vigilância do patrão e furtou da propriedade, em Porto Alegre, cinco galinhas e dois sacos de ração. Embora tenha devolvido as aves e a ração furtadas, nos oito anos seguintes o fato mobilizou o moroso Judiciário brasileiro.

"Garnisé", então com 26 anos, foi denunciado em 2006 sob a acusação de "subtrair coisa alheia móvel" (artigo 155 do Código Penal). O crime é passível de pena de um a quatro anos de prisão e multa. A ação penal contra ele somente veio a ser trancada em novembro último pelo Supremo Tribunal Federal.
 Contrariando parecer do Procurador-geral da República, a 2ª Turma do STF acompanhou, por unanimidade, o voto do ministro Ayres Britto do STF, que reconheceu a "inexpressividade econômica e social" do furto. E mais: ressaltou que a coisa furtada já havia sido devolvida. Ayres Britto entendeu que não era o caso de "se mobilizar a máquina custosa, delicada e ao mesmo tempo complexa" do Judiciário, para, afinal, "não ter o que substancialmente proteger ou tutelar", pois as penosas e a ração haviam sido restituídas.
 Dois pontos polêmicos provocaram a longa tramitação. Inicialmente, uma juíza gaúcha recebeu a denúncia. Depois, outra magistrada, após interrogar "Garnisé", rejeitou a denúncia, com base no princípio da insignificância (ou seja, seria um crime de bagatela, fato que não constitui infração penal). O Ministério Público apelou, pois entendeu que a juíza não poderia ter antecipado a absolvição. O Tribunal de Justiça gaúcho anulou a decisão da juíza.
 A Defensoria impetrou habeas corpus no Superior Tribunal de Justiça. No entanto, a 5ª Turma considerou que a conduta de "Garnisé" não poderia ser considerada irrelevante para o direito penal. Os dois sacos de ração e as cinco galinhas foram avaliados em R$ 286. O STJ decidiu que, no caso de furto, "não se pode confundir bem de pequeno valor com o de valor insignificante".
 Ou seja, o furto cometido por "Garnisé" não poderia ser considerado bagatela.
Essa controvérsia foi dirimida pelo ministro Ayres Britto. Ele viu na conduta do caseiro "muito mais a extrema carência material do paciente do que indícios de um estilo de vida em franca aproximação da delituosidade".

Um roubo de galinhas ocupou a máquina judiciária do país durante nove anos e mobilizou inclusive os vulturinos magistrados da Suprema Corte do país. Kafka, advogado, sabia do que falava.


Comentei há pouco o caso do menino que roubava carros desde os nove anos e, aos 14, conseguiu a proeza de ter roubado não menos que 17 carros. No mesmo jornal, comentou um psicanalista:
- Isso não é visto como um talento. A posição do Estado é repressiva, apreendeu 17 vezes e não adiantou nada. A Justiça falha ao não ver o talento desse menino. É mais fácil criminalizar.
A sociedade, insensível, não reconhece os insuspeitos talentos da atual juventude. Mas agora vem o melhor. Iasin Issa Ahmed, titular da maior vara da infância da América do Sul, acha que tais delinqüentes devem ir não para a cadeia, mas para escolas obrigatórias de tempo integral com saída controlada para os garotos de alto risco". Os equipamentos dessas escolas seriam mais especializados do que os da Fundação Casa e exigiriam uma restrição de direitos que o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) não permite. "Não pode ser só um internato. Teria de atrair os meninos de forma que eles não queiram pular o muro, ser uma espécie de colégio suíço."


Garnisé, culpado do hediondo crime de ter roubado cinco galinhas, mereceu a atenção da Justiça brasileira por quase uma década. O menino ladrão de carros, aos 14 anos, montou um currículo invejável. Tem talento, como dizia o psicanalista, e certamente um promissor futuro pela frente. Se K. é condenado por um crime que não sabe qual seja, neste país incrível um delinqüente, responsável por crimes bem definidos, merece não a prisão, mas colégio de elite.


Kafka pretendia fazer ficção. Tivesse ocasião de conhecer o Brasil, estaria fazendo reportagem.

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