terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

FÁBULAS FABULOSAS - Millôr

A automaldição
Régio Nonada ficou olhando o açougueiro empacotar cuidadosamente suas compras(1), e, quando o açougueiro já estava atento a seus próprios gestos(2), mexeu acintosamente na carteira e disse, pesaroso: "Xi, seu Antônio, estou sem um níquel, depois eu pago." Seu Antônio já conhecia o Régio. Disse: "Não faz mal, doutor Régio, eu aceito um cheque." Régio fez uma expressão inda mais pesarosa: "Seu Antônio, o senhor sabe que deixei tudo em cima da cama, na hora de sair? Mas, olha, de tarde mesmo passo por aqui e pago."
O açougueiro fez um ar de desespero e disse, botando a mão no embrulho: "O senhor vai perdoar, doutor Régio, mas da última vez que ficou devendo, levou três meses pra me pagar. Não posso fiar, não; eu vivo disso". Régio botou também a mão em cima do pacote: "Olha, seu Antônio, o senhor sabe como eu sou supersticioso. Crente. Boto a mão aqui como se fosse na Bíblia(3). Juro que volto com o dinheiro logo depois do almoço. Se não voltar, quero que me caia a língua!” Régio falou com tal sinceridade que o açougueiro não teve jeito. Tirou a mão de cima do embrulho e deu de ombros, aborrecido, como quem diz “Tá bem!(4)”. Régio saiu do açougue, dobrou a esquina e, ali mesmo, abriu o pacote de carne. No meio do acém, das tripas e das costeletas estava a língua. Pegou-a e deixou-a cair no chão.
MORAL: TEM GENTE SINCERA.
1. A diferença entre o açougueiro e o ator: o ator encarna os papéis. O açougueiro empapela as carnes.
2. His, dele. Ah, a ambiguidade dos possessivos portugueses!
3. Porém, tem gente que bota a mão na Bíblia como se a pusesse sobre um bife.
4. É o que se chama “expressão corporal.”

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