quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

Textos impecáveis..., gente que sabe escrever...,

Canudos e o Exército ( ARIANO SUASSUNA )

Folha de São Paulo, 30 de Novembro de 1999
O que houve em Canudos e continua a acontecer hoje, no campo como nas grandes
cidades brasileiras, foi o choque do Brasil "oficial e mais claro" contra o
Brasil "real e mais escuro". Ao Brasil oficial e mais claro que não é somente
"caricato e burlesco", como afirmou um Machado de Assis, momentaneamente
perturbado por sua justa indignação, pertenciam algumas das melhores figuras do
patriciado do tempo de Euclydes da Cunha: civis e políticos como Prudente de
Moraes, ou militares como o general Machado Bittencourt.
Bem-intencionados mas cegos, honestos mas equivocados, estavam convencidos de
que o Brasil real de Antônio Conselheiro era um país inimigo que era necessário
invadir, assolar e destruir. O civil que começou a reparar esse erro doloroso
foi Euclydes da Cunha. O militar foi o major Henrique Severiano, grande herói de
Canudos, do lado do Exército. Através de sua bela morte, acendeu ele uma chama
que, juntamente com a de Euclydes da Cunha, temos todos nós -intelectuais,
políticos, padres, soldados- o dever de levar fraternalmente adiante. Conta-se,
em "Os Sertões", sobre o incêndio dos últimos dias de Canudos: "O comandante do
25º batalhão, major Henrique Severiano, era uma alma belíssima, de valente. Viu
em plena refrega uma criança a debater-se entre as chamas. Afrontou-se com o
incêndio. Tomou-a nos braços; aconchegou-a do peito criando, com um belo gesto
carinhoso, o único traço de heroísmo que houve naquela jornada feroz e salvou-a.
Mas expusera-se. Baqueou mal ferido, falecendo poucas horas depois
A meu ver, tal seria o militar simbólico, emblema do verdadeiro soldado
brasileiro, capaz de apoiar um movimento em favor do povo, também simbolicamente
representado aí por essa criança, iluminada entre as chamas do seu martírio.
Euclydes da Cunha, formado, como todos nós, pelo Brasil oficial, falsificado e
superposto, saiu de São Paulo como seu fiel adepto positivista, urbano e
"modernizante". E, de repente, ao chegar ao sertão, viu-se encandeado e ofuscado
pelo Brasil real de Antônio Conselheiro e seus seguidores. Sua intuição de
escritor de gênio e seu nobre caráter de homem de bem colocaram-no imediatamente
ao lado dele, para honra e glória sua. Mas a revelação era recente demais, dura
demais, espantosa demais. De modo que, entre outros erros e contradições, só lhe
ocorreu, além da corajosa denúncia contra o crime, pregar uma "modernização" que
consistiria, finalmente, em conformar o Brasil real pelos moldes da rua do
Ouvidor e do Brasil oficial. Isto é, uma modernização falsificadora e falsa, e
que, como a que estão tentando fazer agora, é talvez pior do que uma invasão
declarada. Esta apenas destrói e assola, enquanto a falsa modernização, no campo
como na cidade, descaracteriza, assola, destrói e avilta o povo do Brasil real.

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