segunda-feira, 12 de julho de 2010

Adeus, Lênin - Janer Cristaldo, um artigo de 2006 que vale a releitura. Propício para os dias atuais.

Che ressuscita do lixo
28 de março de 2006

Em fevereiro de 2004, comentei Adeus, Lênin, este belo filme de Wolfgang Becker,
raridade nestes dias de salas inundadas por bestsellers para consumo de pobres de espírito.
O drama gira em torno de uma cidadã da antiga Berlim Oriental, que caiu em coma um
pouco antes da queda do Muro. Só sai do coma alguns meses depois, quando Berlim é uma
cidade só. Para evitar que a mãe tenha algum infarto com a nova realidade, seu filho
remonta o apartamento com os trastes da era socialista, que nesta altura já haviam sido
jogados a um depósito. Toma o cuidado de fechar janelas e eliminar rádio e televisão. Dada
a insistência da mãe em ter um aparelho de TV, o rapaz passa a produzir noticiários com
um amigo cineasta, no melhor estilo da finada Alemanha Oriental. Ele produz uma RDA
que não mais existe, para consumo da mãe em convalescença.
Um rápido detalhe, talvez despercebido aos olhos de muitos, mexeu comigo na ocasião:
entre os trastes da era antiga, que o filho recupera de um depósito de objetos inúteis para
manter a mãe na ilusão de que nada havia mudado, está um pôster do Che Guevara.
No filme de Becker, que reproduz uma
Alemanha de 1991, Che é ícone
jogado ao lixo.
Neste nosso país incrível, justo
naqueles dias em que eu escrevia a
crônica – isto é, treze anos após a
queda do Muro – estava sendo
ultimado Diários da Motocicleta, de
Walter Salles, idílico panegírico ao
assassino que tem no currículo, entre
outros feitos, ter tornado Cuba um dos
países mais pobres do continente, que
só não é o mais o pobre porque ainda
existe o Haiti.
Vi e revi o filme mais duas ou três vezes. Num destes sábados, dia 18 passado, encontrei-o
na programação do Telecine. Vou deliciar-me de novo, pensei, com este irônico relato da
derrocada da barbárie. Quando acabou o filme, senti uma lacuna em meu prazer. Não havia
visto o momento em que o pôster do Che é retirado do lixo. Imaginei que talvez tivesse ido
à cozinha ou ao banheiro e perdido a cena. Decidi então rever meu passado recente. Eu
havia visto o filho retirando da parede a foto de Honecker, quando o campeão de tiro na
nuca renuncia. Havia visto o rapaz repondo na estante um livro de Anna Seghers. Até ali
não havia levantado do sofá. A cena do pôster teria de estar antes da chegada da mãe ao
apartamento. Não estava. O episódio fora cortado.
Cena do filme Adeus, Lênin não exibida na TV e
vídeo no Brasil.
Denunciei o fato em meu blog e recebi mensagens de pessoas que também não haviam
visto a cena. Leitores incrédulos preferiram rever o filme, que seria reprisado na madrugada
de terça-feira, dia 21. Sentei-me de novo ante a telinha e confirmei: a cena de fato fora
cortada. Quando a mãe volta, em rápidos fotogramas vê-se o pôster reposto na parede de
cabeceira da cama. Che ressurge do lixo, mas a cena em que foi retirado do lixo nos foi
subtraída. É como se sempre estivesse estado naquela parede e jamais tivesse sido jogado
ao lixo. A direção do Telecine – escrevi então – deve ter julgado a imagem por demais
chocante para o público brasileiro.
Leitores que também curtiam o filme me alertaram: haviam-no visto em DVD e nada da
cena do pôster no lixo. Para conferir, peguei um DVD na locadora. De fato, o filme estava
censurado no próprio DVD. Quem julgou a imagem por demais chocante para o público
brasileiro foi a distribuidora. Mas pode o Telecine distribuir um filme mutilado, só para
agradar as viúvas do socialismo? A meu ver, tem a obrigação de reprisar, para o público
brasileiro, o filme sem cortes.
Em pleno ano da graça de 2006, dezessete anos após a queda do Muro, quinze anos após a
dissolução da União Soviética, temos ainda stalinistas de plantão preservando a imagem de
um bandoleiro internacional a serviço do comunismo. Da mesma forma que Stalin mutilava
fotos, para impor aos povos sua falsificação da História, mais de meio século depois da
morte de Stalin temos neste Brasil censores mutilando filmes para salvar a imagem de
Guevara. Se o filho da militante produzia uma RDA inexistente para manter sua mãe na
ilusão de um mundo socialista, os distribuidores de Adeus, Lênin produzem um filme
distinto do filme original, para manter o mito idílico de um apparatchik de gatilho fácil e
sem escrúpulos.
Não por acaso, na Bolívia, Guevara é cultuado como San Ernesto de la Higuera. La Higuera
é a aldeia onde Che foi preso. Um monumento ao assassino e um memorial na antiga escola
são as principais atrações turísticas da área. Depois do filme de Walter Salles, a aldeia
passou a fazer parte da "Ruta del Che". Eficaz intermediário entre Deus e os seres
humanos, o novo santo já tem operado milagres.
Associada a causas nobres, a imagem do Che pode circular. Na terça-feira passada, 21 de
março, está presente na primeira página da Folha de São Paulo, numa foto de alunos de
uma escola municipal em Itaquera, São Paulo. Discreto, como convém aos santos, Che está
no canto inferior direito da foto, na capa de um caderno escolar. A reportagem sequer fala
do guerrilheiro. Apenas denuncia o fato de que a escola está situada acima do forno da
padaria de um supermercado. O Che, você engole sem perceber.
Dois dias depois, na quinta-feira, no mesmo jornal, em página interna, uma homenagem
mais evidente. Em uma foto de indígenas equatorianos protestando contra as negociações
para um tratado de comércio com os EUA, lá está de novo o Che, glorioso, sobressaindo da
foto, como que liderando o protesto. Como se o homem que levou um país à miséria
econômica tivesse qualquer autoridade para liderar protestos contra tratados comerciais.
Já não basta termos de ver na televisão uma deputada dançando para saudar a vitória da
corrupção, já não basta vermos o Estado petista assestando toda sua máquina contra um
pobre caseiro, temos ainda de consumir gato por lebre e engolir as mentiras piedosas de
stalinistas instalados em distribuidoras de filmes. Nestes dias, quem quiser ver o filme na
íntegra, terá de viajar a Paris, Berlim ou Roma. Enfim, a países onde Che já teve o destino
que sempre mereceu, a famosa lata de lixo da História. Como fazíamos na época da
ditadura militar. Quem podia, viajava à Europa para ver bom cinema. Quem não podia ir à
Europa, ia a Montevidéu ou Buenos Aires. Neste sentido, os cidadãos de Santana do
Livramento eram privilegiados, bastava atravessar a Calle Internacional e assistir ao filme
em Rivera.
Não por acaso, um filme como La Palombella Rossa, de Nanni Moretti, jamais passou no
Brasil. Estava muito perto da queda do Muro, as chagas das viúvas ainda continuavam
abertas. East Side Story, produção alemã de 1997, dirigida por Dana Ranga, cineasta
romena que vive em Berlim, saudado pela imprensa americana como um dos melhores da
década, passou quase clandestinamente em uma sala no Rio, outra em São Paulo. A crítica,
nem um pio. Hoje, a censura é mais sutil. O filme passa. Mas que nenhuma blasfêmia seja
feita aos sagrados ícones do hagiológio das esquerdas.


Assista:
Filme completo



Trailer



Filme completo


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