Queda de Dilma Rousseff põe o populismo e a corrupção no centro das preocupações nacionais
O PT nunca se sentiu tão poderoso como em 2010. Naquele ano, o presidente Lula terminava seu segundo mandato como recordista de popularidade e lançava a candidatura de Dilma Rousseff à Presidência da República. Havia dois objetivos. A curto prazo, a eleição da primeira mulher pelas mãos do primeiro representante genuinamente popular a chegar ao posto. Um simbolismo caro à esquerda. A longo prazo, comandar o país por pelo menos vinte anos, justamente a meta traçada anteriormente, e não alcançada, pelo PSDB. Entre os aliados de Lula e Dilma, havia até quem trabalhasse com horizontes mais ambiciosos. O ministro de Comunicação Social, Franklin Martins, dizia que “o ciclo virtuoso de crescimento com inclusão social” renderia frutos duradouros. Festejada na propaganda oficial, a nova classe média, dínamo do crescimento de 7,5% em 2010, despejaria votos nos petistas por anos a fio, talvez décadas: oito anos de Lula, oito anos de Dilma, a volta de Lula, a consagração de Fernando Haddad… O roteiro estava traçado. Nele, eternizar-se no poder não era mera figura de linguagem.
Na quarta-feira passada, esse enredo foi dramaticamente abreviado. Por 61 votos a 20, os senadores aprovaram o impeachment de Dilma e encerraram um período de treze anos de governo do PT, atendendo ao clamor de milhões de brasileiros que foram às ruas em manifestações históricas. A sentença apareceu no painel eletrônico do plenário às 13h35. Uma hora depois, o senador Vicentinho Alves (PR-TO), primeiro-secretário do Senado, chegou ao Palácio da Alvorada para notificar Dilma de que ela se tornara o segundo presidente a ter o mandato cassado desde a redemocratização. Na recepção, um segurança orientou Alves, que votou a favor do impedimento, a estacionar na garagem, “um lugar mais discreto”. O ex-ministro Jaques Wagner, encarregado de recepcioná-lo, pediu para ver o ofício. “É melhor eu ir sozinho para evitar atrito com o nosso pessoal que está lá com ela”, disse. Alves explicou que não seria possível. Dez minutos depois, ele foi autorizado a entrar. Dilma assinou o documento com um ar de indiferença. Eram 15h05 quando ela atestou o óbito do ambicioso plano de hegemonia política do PT. Um plano que, desde a chegada do partido ao Planalto, estava assentado num pecado original, que não foi inventado pelo PT, não foi implantado pelo PT, mas foi executado com rigor e método nunca antes vistos neste país: a corrupção da classe política com recursos públicos.
Em 2005, VEJA mostrou um funcionário dos Correios recebendo propina. A estatal era fatiada entre PT, PMDB e PTB. Cada partido controlava uma diretoria, recolhendo dinheiro sujo em sua área. A verba subornava parlamentares no Congresso. Era o mensalão. “O governo acabou”, sentenciou José Dirceu, o então poderoso chefe da Casa Civil, preocupado com os desdobramentos do caso. Dirceu, dirigentes partidários, deputados e empresários foram condenados à prisão. Mas o governo sobreviveu. Lula declarou-se traído e inocente, de nada sabia. Reelegeu-se em 2006, fez um governo aplaudido pelo eleitorado e ajudou Dilma a conquistar dois mandatos. Seu plano era voltar a comandar o país em 2018 e permanecer no posto até 2026. O obstáculo essencial, agora, está no avanço inexorável da Lava-Jato. Deflagrada em 2014, a operação descobriu um esquema de corrupção montado nos mesmos moldes do mensalão, só que 200 vezes maior em volume de dinheiro roubado. Outra diferença: a investigação, pelo menos até aqui, não tem poupado ninguém.
Os maiores empreiteiros do país foram presos e dividiram o espaço das celas com mais um ex-tesoureiro do PT. Lula está indiciado por corrupção, lavagem de dinheiro e falsidade ideológica. Ele e Dilma são investigados por tentativa de obstrução da Justiça e acusados por delatores de financiar suas campanhas com propinas derivadas de contratos da Petrobras. Na semana passada, o ex-senador Delcídio do Amaral prestou depoimento à Lava-Jato. Confirmou o que VEJA antecipara em março: Lula era o chefe do esquema de corrupção.
Em pouco mais de cinco anos de mandato, Dilma jogou o país no atoleiro. Sua tolerância à inflação, em nome do crescimento, deu fôlego ao dragão, que voltou a superar a casa dos dois dígitos. A renda caiu, o desemprego subiu e parte da nova classe média, que consolidou o PT no poder e lá o manteria, voltou para a base da pirâmide social. Dilma perdeu o mandato pelo conjunto da obra. Formalmente, o impeachment foi aprovado porque ela cometeu crime de responsabilidade ao usar recursos de bancos públicos para pagar despesas do Tesouro, prática conhecida como pedalada fiscal, e ao liberar créditos suplementares sem a autorização prévia do Congresso. É por causa da discrepância entre a razão técnica (orçamentária) e a motivação real (corrupção e recessão) que Dilma se diz vítima de um golpe parlamentar tramado por “desleais”, “traidores” e “covardes”. Ao defender-se no Senado na segunda-feira, numa sessão que durou catorze horas, ela jurou inocência, disse que não cometeu crime de responsabilidade e afirmou que só o povo, por meio de eleições livres e diretas, poderia destituir um mandatário devido ao “conjunto da obra”. “Por duas vezes, vi de perto a face da morte. Quando fui torturada por dias seguidos, submetida a sevícias que nos fazem duvidar da humanidade e do próprio sentido da vida. E quando uma doença grave e extremamente dolorosa poderia ter abreviado minha existência. Hoje, eu só temo a morte da democracia”, declarou.
Ela não impediu o impeachment, mas, graças a uma esdrúxula articulação dos presidentes do Senado, Renan Calheiros (PMDB-AL), e do Supremo Tribunal Federal (STF), Ricardo Lewandowski, conseguiu evitar a aprovação de sua inabilitação para o exercício de funções públicas. Preservou, assim, o direito de assumir cargos públicos e disputar eleições, ao contrário do entendimento adotado pelo STF no caso de Fernando Collor, destituído da Presidência em 1992.
O presidente Michel Temer, agora em definitivo, tucanos e outros expoentes do novo governo não gostaram dessa decisão, que já está sendo contestada judicialmente. Dilma, mantida por enquanto no jogo político, também recorreu ao STF para anular o impeachment e prometeu uma oposição “enérgica e incansável”. De saída, citou Vladimir Maiakovski, o poeta futurista da Revolução Russa: “Não estamos alegres, é certo, mas também por que razão haveríamos de ficar tristes? O mar da história é agitado. As ameaças e as guerras, haveremos de atravessá-las. Rompê-las ao meio, cortando-as como uma quilha corta”. É belo, mas também um autêntico réquiem.
Com reportagem de Laryssa Borges e Hugo Marques
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