A enorme burrice de chamar de “delator” quem coopera com investigações na Justiça. Em países sérios, não se procura denegrir nem demonizar quem passa para o lado certo e ajuda a desvendar crimes e a colocar bandidos e ladrões na cadeia
Nenhum país sério usa termo depreciativo e maldito para designar quem coopera com a Polícia e a Justiça no desmantelamento de organizações criminosas. Já no Brasil… (Ilustração: partidoxlalibertad.com)
Post publicado originalmente a 15 de setembro de 2014
O objetivo de Costa, naturalmente, é obter vantagens (LEGAIS!) perante a Justiça — no caso, tentar diminuir o tempo que passará na cadeia por ser o operador do esquema além de, eventualmente, conseguir que parentes – como filhas e genros — sejam exonerados do processo a que ele responde. Mas ninguém duvida de que, com seu depoimento, do qual VEJA desta semana adianta importantes pontos, o ex-diretor está prestando um grande serviço ao país e aos bons costumes públicos.
E aí chegamos ao ponto deste post: cooperar com a Polícia, o Ministério Público e a Justiça para obter redução da pena — e fazer com que bandidos sanguinários chefes de quadrilhas, por exemplo, ou, como no caso, ladravazes de dinheiro público sigam para a penitenciária — recebeu, no Brasil, o pavoroso nome de “delação premiada”.
Não sei, não, se essa denominação não foi proposital, espalhada, nos primeiros anos em que o instituto começou a vigorar, com o objetivo de desmoralizá-lo. “Delação” é coisa feia, horrorosa. “Delator” — que é como TODO MUNDO está chamando Paulo Roberto Costa — é qualificativo enormemente depreciativo, é maldito, é razão generalizada, quase universal, de desprezo por quem assume esse papel.
É uma rematada burrice, na melhor das hipóteses, qualificar como “delator” criminosos que resolverm colaborar para que seja feita justiça. Esse qualificativo ATRAPALHA a Justiça, INIBE possíveis integrantes do crime organizado, por exemplo, que desejam mudar de lado e, em troca de penas mais leves, ajudem a desmantelar quadrilhas e colocar seus chefões atrás das grades.
Em outros países, os legisladores evitaram cuidadosamente tratar com esse qualificativo desmoralizante os colaboradores.
O principal exemplo foi a Itália, que aprovou legislação específica para fazer frente à brutal onda de terrorismo de extrema esquerda e de extrema direita desencadeado nos anos 70 — os chamados “Anos de Chumbo” — e que prosseguiria ainda por parte dos 80, até sua eliminação pelo Estado democrático.
Também no combate à Máfia e similares a República Italiana fez o mesmo, e para ambos os casos surgiu a figura dos pentiti, os “arrependidos” — pessoas que pertenceram a quadrilhas ou grupos terroristas e que, depois de presas, resolveram “arrepender-se” e colaborar com as investigações. O sistema legal os chama decollaboratori di Giustizia, ou seja, colaboradores da Justiça.
A Colômbia, país imerso em virtual guerra civil há mais de meio século — e cujas forças da ordem, felizmente, vêm esmagando aos poucos os narcoguerrilheiros das chamadas “Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia” (Farc) — seguiu pelo mesmo caminho, obtendo grande êxito e desencadeando operações extremamente bem sucedidas graças a ex-terroristas que mudaram de lado e passaram a municiar o governo com informações.
Lá, por lei, isso não é chamado de “delação”, mas de colaboración eficaz con la Justicia. O “eficaz ” é exigência presente não apenas na lei colombiana, mas em diversas legislações, por razões óbvias: a cooperação precisa dar resultados para que o preso obter benefícios legais.
Uma rara foto dos principais comandantes da narcoguerrilha das Farc: Alfonso Cano (de barba), foi morto em novembro de 2011 com o auxílio de réus colaboradores, o mesmo ocorrendo com “Mono Jojoy” (de boina preta, em primeiro plano), em setembro de 2010. À direita, o fundador das Farc, Manuel Marulanda, que teve morte natural em 2008 e foi sucedido por Cano (Foto: El Tiempo)
No caso da Colômbia, ao lado de um serviço de inteligência militar elogiado pelos Estados Unidos, foi essencial a colaboração de ex-terroristas que mudaram de lado nas operações mais exitosas das Forças Armadas contra o terror das Farc — entre outras, a localização e morte, em seu superprotegido bunker na Amazônia colombiana, de um dos mais carismáticos e também mais sanguinários, corruptos e cruéis dirigentes terroristas, Victor Julio Suárez Rojas, o “Mono Jojoy”, em setembro de 2010, e o golpe duríssimo que foi a morte pelas Forças Armadas do líder supremo Alfonso Cano, pouco mais de um ano depois, em outra operação militar na selva.
A burrice brasileira com a “delação” praticamente não existe em país algum que mantenha instituto semelhante. Até em países menos desenvolvidos como a Guatemala foi criada, por lei de 2006, a figura docolaborador eficaz.
Para não falar, é claro, nos Estados Unidos, onde os acordos entre criminosos e os promotores de Justiça são conhecidos em toda parte, graças, sobretudo, ao cinema e às séries de TV. O instituto dasubstantial assistance in the investigation or prosecution (ajuda substancial na investigação ou no processo) beneficia réus ou presos já condenados que cooperem com o governo — por meio do promotor — prestando informações sobre co-réus, cúmplices ou outras pessoas alvo da mesma investigação.
Curiosamente, no Brasil, o Código Penal, mãe de todas as leis criminais, não confere nenhuma denominação pejorativa a quem coopera com as investigações, como se pode ver no parágrafo único do artigo 159, que trata do crime de extorsão mediante sequestro:
“§ 4º - Se o crime é cometido em concurso, o concorrente que o denunciar à autoridade, facilitando a libertação do seqüestrado, terá sua pena reduzida de um a dois terços.”
A Lei de Proteção a Vítimas e Testemunhas (lei nº 9.807, de 13 de julho de 1999) tampouco menciona “delação” ou delator, utilizando expressão muito mais adequada ao referir-se, em seu capítulo II, a“reús colaboradores”.
O mesmo se dá com a Lei dos Crimes Hediondos (lei nº 8.072, de 25 de julho de 1990), que prevê, no parágrafo único de seu artigo 8º, que“o participante e o associado que denunciar à autoridade o bando ou quadrilha, possibilitando seu desmantelamento, terá a pena reduzida de um a dois terços”.
E por aí vai. A legislação, por meio de seus principais diplomas legais que trataram do tema, NÃO denomina “delator” quem coopera, nem “delação premiada” a cooperação com a Justiça em troca de minorar a pena do réu.
Quem passou a usar a expressão horrenda, depreciativa e que NÃO ESTIMULA PESSOAS A MUDAREM PARA O LADO CERTO foram, portanto, juristas, advogados, autoridades da própria Polícia e, claro, como sempre ocorre, a imprensa. E, obviamente, aqueles que se vêem prejudicados com a colaboração com a Justiça, ou seja, os bandidos e quadrilheiros.
Em poucas palavras, todos eles estão prestando um grande desserviço ao país e à causa da Justiça.
http://veja.abril.com.br/blog/ricardo-setti/politica-cia/a-enorme-burrice-de-chamar-de-delator-quem-coopera-com-investigacoes-na-justica-em-paises-serios-nao-se-procura-denegrir-nem-demonizar-quem-passa-para-o-lado-certo-e-ajuda-a-desvendar-crimes-e-a/
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