domingo, 23 de março de 2014

A vida secreta de Hilda Hilst

Dez anos após a morte da escritora, cineasta recupera documentos e gravações inéditas que contam passagens de sua vida, mantidas em sigilo, como a paixão pelo jornalista Júlio de Mesquita Neto

Hilda Hilst era uma mulher brava. Quando criança, uma das primeiras alunas do Colégio Santa Marcelina, em São Paulo, desistiu do projeto de ser santa – uma das primeiras “profissões” que lhe ocorreu abraçar – quando uma das freiras mandou que ela baixasse a cabeça para ouvir o sermão.
“Só baixo os olhos diante de Deus”, respondeu. Em represália, perdeu para sempre o papel de Chapeuzinho Vermelho, e passou, a partir dali, a interpretar o papel do vilão da história nos espetáculos de fim de ano da escola religiosa. Hilda passou a viver o Lobo Mau.
abre.jpg
Faz dez anos que a autora de “Rútilo Nada”, prêmio Jabuti de 1994, morreu. Centenas de páginas de diários, fitas gravadas, rolos de filme Super-8, cartas e histórias como esta, contadas durante esfumaçadas noites em torno de sua mesa, permaneceram sob os cuidados de seu melhor amigo, o escritor José Luiz Mora Fuentes. Um ano antes de morrer, em 2009, Mora Fuentes convidou a cineasta Gabriela Greeb para realizar um documentário sobre a Casa do Sol, morada da escritora em Campinas, interior paulista, desde 1966, e hoje instituto cultural com seu nome. “Contato, Hilda Hilst Pede Contato” deve sair este ano do forno.
O título do filme é uma referência às tentativas de comunicação da escritora com amigos, parentes e ídolos mortos. A cineasta chegou a viver na casa de alguns deles durante a fase de pesquisa, levantando mais de 100 horas inéditas de gravações. 
Gabriela mostrou o material para ISTOÉ.
HILDA-03-IE-2313.jpg
COMUNIDADE
Abaixo, Hilda Hilst (a terceira da dir. para a esq., de pé) com os amigos
Caio Fernando Abreu (o segundo da esq. para a dir.) e Lygia Fagundes
Telles (a segunda da esq. para a dir., sentada) na Casa do Sol (acima)
HILDA-05-IE-2313.jpg
As experiências registram tentativas de contato da escritora com gente como o escritor Caio Fernando Abreu, que viveu na Casa do Sol em 1968, após ser detido e depois liberado pelo Dops. Foi lá, aliás, que o autor e jornalista gaúcho, morto em 1996, escreveu “Inventário do Irremediável”, importante conjunto de textos de resistência cultural do período mais grave da censura no País. Em outras falas, ouve-se uma Hilda preocupada com as injustiças do Brasil, como quando pede contato com Vladimir Herzog, para descobrir seu assassino e provar que sua morte não tinha sido suicídio. Em outros momentos, a voz é de uma mulher saudosa dos pais. Há também reflexões sobre suas influências literárias: “Kafka, você está me ouvindo? Não deve ser fácil aí do outro lado.”
É que, além de brava, Hilda era uma mulher amorosa. Apaixonou-se pela humanidade da literatura, que a fez deixar uma vida social invejável para viver no silêncio de um sítio onde podia ter todos os seus livros e se dedicar ao ofício do qual nunca conseguiu se manter inteiramente. Sempre orbitada por pessoas interessadas em seu trabalho, recebia com braços abertos e um bom vinho do Porto, recomendação médica, dizia – uma garrafa no almoço, era a medida para uma entrevista.
IEpag100e101Hilda-2.jpg
 

A Casa do Sol estava sempre cheia. Muitos escritores e artistas passavam meses ou às vezes anos dividindo o teto e os cuidados da proprietária com os quase 150 cachorros que vivem lá até hoje. “E muitos deixaram documentações da rotina, como o artista plástico Jurandy Valença, outro dos grandes amigos da escritora”, conta Gabriela, que só conseguiu chegar até a fase de produção graças a um prêmio de R$ 600 mil da Petrobras e R$ 100 mil do próprio bolso – o orçamento original era de R$ 1,6 milhão.
Amigos, cachorros e também os homens povoam a história da escritora, que falava palavrão e publicava textos obscenos belíssimos e de uma ironia cortante. Hilda teve muitos.
Os únicos que quis e não teve foram Júlio de Mesquita Neto, antigo dono do jornal “O Estado de São Paulo” – com quem se correspondeu, conviveu e para quem dedicou, em segredo, o livro “Júbilo, Memória e Noviciado da Paixão” – e Marlon Brando. Em “Fico Besta Quando me Entendem”, compilação de entrevistas organizadas pelo jornalista Cristiano Diniz, ela conta que namorou Dean Martin só para conhecer Brando. E como o namorado demorava a apresentá-los, bebeu bastante, subornou o porteiro do hotel e bateu na porta do quarto onde o ator estava hospedado. Ele recebeu a escritora num “belo robe de seda” e, com muita educação, perguntou: “Só porque você é bonita acha que pode acordar um homem a essa hora da noite?” Sem baixar os olhos, Hilda deu meia-volta e foi embora.

Nenhum comentário:

Postar um comentário