Por Ruy Castro, na Folha de hoje
Houve quem achasse precipitada a ação da polícia e do governo de São Paulo ao invadir e desbaratar, mesmo temporariamente, a cracolândia. E imprudente, ao espalhar os usuários de crack por áreas da cidade até então a salvo do convívio com aquelas pessoas. Argumentam também que as ações de segurança e saúde pública devem ser feitas em conjunto e não adianta desgraçar ainda mais a vida dos infelizes sem uma alternativa de tratamento.
Todos os argumentos são válidos, inclusive este, mas há fatores a considerar. Enquanto ilhados naquela região de São Paulo, os usuários sentiam-se seguros dentro da sua miséria. Suas únicas relações eram entre si e com quem comerciavam para conseguir dinheiro ou droga. Era uma cadeia produtiva fechada, que poderia durar pelo resto da (curta) vida de cada um, e não os induzia a considerar a hipótese de lutar pela recuperação.
Ou a sequer considerar seu dia-a-dia na cracolândia, composto de síndrome de abstinência, mendicância, extorsão, indescritível imundície, animais peçonhentos, feridas expostas, assalto sexual permanente, estupro, gravidez, aborto, fome, doença e dor -tudo isso compensado pelos breves momentos de alívio produzidos pela droga. Não existe prazer na cracolândia, só alívio.
Uma ação como a da semana passada, cortando o elo entre o usuário e seus iguais, ou entre o usuário e o traficante, tende a ser algo desesperador para o dependente. Como ele não consegue passar muito tempo sem o produto, a quebra na cadeia, se repetida, pode levá-lo, num extremo, a tornar-se violento e ameaçador - e, em outro, a procurar ajuda, quem sabe internação e tratamento.
Expulsos de seu habitat, ainda que por algumas horas, esses dependentes têm uma chance de exercer a última centelha de razão que lhes resta.
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