Por Gil Castello Branco
O verão e as calamidades estão apenas começando, tal como acontece no Brasil há anos. No início do século XIX, as cartas de um funcionário da Secretaria de Estado do Rio de Janeiro a seu pai, o bibliotecário da Livraria da Ajuda, Francisco José dos Santos Marrocos, já registravam fatos relacionados às enchentes na Bahia. Em um dos trechos o autor comenta: “S. A. R. (Sua Alteza Real) mandou daqui a toda a pressa o Architecto José da Costa com hum grande numero de outros Architectos e Engenheiros, para alinharem huma Cidade nova fóra da eminencia dos morros e montanhas, de que ainda agora continuão a despegar-se pedaços, que arrazão tudo que encontrão.”
Desde o Império, portanto, a natureza anda de braços dados com a falta de planejamento e o improviso, em níveis municipal, estadual e federal. Os desastres são considerados fatalidades pelos governantes, como se nenhuma culpa lhes coubesse.
Em 2011, levantamento do Serviço Geológico do Brasil constatou que em 251 municípios brasileiros existem possibilidades de acidentes. Em 28 dessas cidades residem 178,5 mil pessoas, com risco alto ou muito alto de serem afetadas por enchentes ou desabamentos. Na raiz do problema está o fracasso da política habitacional, o que propiciou ocupações precárias e invasões, sob a vista grossa das autoridades públicas. Apesar da crescente preocupação com as questões sociais, na última década a quantidade de pessoas que vivem em favelas quase dobrou, passando de 6,5 milhões em 2000 para 11,4 milhões em 2010. Nesse cenário, as catástrofes naturais são previsíveis.
Curiosamente, dos R$ 155,6 milhões pagos, a maior parte (R$ 34,2 milhões) foi destinada a Pernambuco, estado do atual ministro, Fernando Bezerra.
O governo federal, por exemplo, possui programa com o sugestivo título de “Prevenção e Preparação para Desastres”. Nos últimos 8 anos, as dotações autorizadas pelo Congresso Nacional para esta rubrica somaram R$ 2,8 bilhões, mas apenas R$ 695,4 milhões foram aplicados. Em outras palavras, de cada R$ 4 previstos em orçamento, apenas R$ 1 foi gasto. Além disso, o ditado “é melhor prevenir do que remediar” é praticado às avessas. No mesmo período, o programa “Resposta aos Desastres e Reconstrução” consumiu R$ 5,9 bilhões, 7 vezes mais do que o aplicado na prevenção.
No ano passado, não foi diferente. Foram autorizados R$ 508,5 milhões para o programa de prevenção, porém somente R$ 155,6 milhões (30,6%) foram pagos. Em contrapartida, R$ 1 bilhão foi desembolsado com o programa de reconstrução. A explicação do Ministério da Integração Nacional é que os estados e os municípios não apresentaram propostas de obras preventivas, o que levou a Pasta a editar “cartilha” sobre intervenções em áreas de risco. Curiosamente, dos R$ 155,6 milhões pagos, a maior parte (R$ 34,2 milhões) foi destinada a Pernambuco, estado do atual ministro, Fernando Bezerra. O fato pode levar à conclusão irônica que os projetos que podem evitar tragédias, assim como o frevo, são tipicamente pernambucanos.
É certo que obras de macrodrenagem, de urbanização de assentamentos precários e, ainda, o Minha Casa, Minha Vida, também contribuem para minimizar as tragédias. De qualquer forma, a incompetência no uso dos recursos do programa de “Prevenção e Preparação para Desastres” é impressionante.
Alguns avanços, porém, devem ser reconhecidos. Entre eles, o uso do Cartão de Pagamento de Defesa Civil, que dará transparência e celeridade aos gastos. Ademais, a implantação do Centro Nacional de Gerenciamento de Riscos e Desastres (Cenad) — cogitada desde 2004 — sairá do papel. Até novembro passado, o que existia eram alguns servidores, sem um meteorologista sequer, atuando precariamente em três salas do Ministério da Integração Nacional.
Agora, o grupo irá trabalhar em local adequado tecnicamente, inclusive em plantão de 24 horas, até porque os fenômenos climáticos não respeitam o horário comercial. Entretanto, o concurso destinado à contratação de 52 profissionais para o Cenad só acontecerá em março. Até lá, estão sendo recrutados servidores de outros órgãos, verdadeiro “exército de Brancaleone”, que irá monitorar as chuvas deste início de ano.
Diante dos fatos, o ministro da Ciência e Tecnologia, Aloizio Mercadante, admitiu o óbvio, ou seja, que o governo não será capaz de impedir as mortes decorrentes das chuvas, neste e nos próximos verões. Assim, é provável que os morros e as montanhas continuem a desabar aos pedaços, arrasando tudo o que encontram pelo caminho, tal como há 200 anos.
Fonte: O Globo, 03/01/2012
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