Não são poucas as pessoas que consideram 2020 o ano da tempestade perfeita — uma rara combinação de circunstâncias que resulta num evento de consequências especialmente ruins. Já até esquecemos as mazelas do início do ano, como as enchentes no Sudeste provocadas por chuvas em volume recorde e as misteriosas mortes causadas pela contaminação de uma marca de cerveja. Eram problemas pequenos ante o que viria depois, a pandemia de covid-19 que nos levou a um cenário de tripla crise: sanitária, econômica e política, cada uma compondo com a seguinte.
Para o agronegócio, porém, a situação é praticamente a inversa: grande parte do setor vive uma espécie de arco-íris perfeito. Decerto que há chuva, há ventania, há percalços; mas eles vêm junto com um sol brilhante. E, embora não seja verdade que os arco-íris terminam num pote de ouro, este termina.
O outro vírus da China
O atual momento extraordinário do agronegócio brasileiro começou com um vírus que surgiu na China. Não o novo coronavírus, mas um vírus da família Asfarviridae, que provoca uma doença chamada peste suína africana (PSA). Como diz o nome, trata-se de uma doença primeiramente documentada na África, que já andou pelo Brasil no final da década 1970 mas foi erradicada. Ainda bem. Em comparação com ela, a covid-19 é fichinha. Imagine uma doença que se espalha de forma tão rápida como o sarampo e é tão letal quanto o ebola. Por sorte, ela não acomete os seres humanos. Mas é devastadora para os porcos. A cepa de PSA que foi detectada na China em agosto de 2018 tem letalidade de praticamente 100%. E se espalhou para 32 províncias ou regiões autônomas do país.
Em questão de semanas, entre um terço e metade do maior rebanho de porcos do mundo, com cerca de 300 milhões de cabeças, teve de ser sacrificado. A China, que produz muita carne de porco mas consome tudo o que produz, precisou recorrer à importação. “A China produz metade da carne suína do mundo”, diz Marcos Jank, professor de agronegócio global do Insper. “Perdeu quase um terço do volume de carne suína mundial. Era praticamente autossuficiente, e de uma hora para outra passou a ser o maior importador do mundo: comprou 4 milhões de toneladas.” Comprou tudo o que podia, não tudo o que queria. “O consumo dos chineses, normalmente de 50 milhões de toneladas, caiu para 35 milhões”, diz Jank.
A avidez foi tanta que o país até reduziu a taxação de suínos provenientes dos Estados Unidos, mesmo em meio à guerra comercial que trava com o governo Trump. Conforme foi se organizando, a importação foi aumentando. Entre maio de 2019 e maio deste ano, a compra de carne de porco subiu 63%. Como ainda não bastava, subiram também as importações de carne de boi e de frango.
Criou-se inclusive um fenômeno no mercado pecuarista, o “boi China”. Os frigoríficos capacitados a exportar têm pagado bônus de R$ 5 a R$ 15 por arroba dos bichos que atendem ao padrão requerido pelos chineses: o animal deve ser jovem, com no máximo quatro dentes incisivos permanentes, atestado oficial de idade abaixo dos 30 meses, livre de febre aftosa e com garantia de rastreabilidade. Dão esse bônus porque a China têm pagado quase o dobro do preço praticado no mercado interno. E comprou 53% de toda a carne bovina exportada pelo Brasil no primeiro semestre, propiciando uma receita de US$ 2,2 bilhões, 160% a mais que no mesmo período do ano passado.
Com pressa de se abastecer, os chineses agilizaram o processo de habilitação de exportadores. Em vez de demorarem anos com seguidas inspeções para averiguar o cumprimento de regras sanitárias específicas, eles autorizaram de uma tacada só, em setembro passado, 25 frigoríficos a exportar; em novembro, acrescentaram mais 13 à lista, que agora é composta de 100 frigoríficos habilitados, sendo 17 para a exportação de suínos, segundo relação da Associação Brasileira de Frigoríficos (Abrafrigo). Também liberaram a importação de miúdos de porco, que antes não aceitavam.
O Brasil é o maior beneficiário mundial dessa demanda chinesa. Em especial, é claro, os produtores de carne, que aproveitaram um aumento de 40% nas exportações. O Brasil como um todo também lucra, pelos impostos, pela entrada de dólares e pela ativação da economia. Mas, para o consumidor, um efeito colateral foi o aumento do preço da carne de porco no mercado doméstico, em cerca de 30%.
A bênção do clima
É óbvio que a China não iria se acomodar à drástica redução de seu rebanho. Embarcou num tremendo esforço de reconstrução de suas matrizes. Só este ano, chegaram ao país seis aviões carregando mais de 4 mil porcos franceses, dentro do plano de produzir 20 milhões de animais em tempo recorde. As crias já estão crescendo. Mas para isso precisam de soja. Uma enorme quantidade de soja. E quem tem soja para oferecer?
Não é à toa que as vendas do principal item da lista de exportações do Brasil tenham subido 36% no primeiro semestre deste ano, em relação ao mesmo período do ano passado. Foram quase 70 milhões de toneladas de soja, 73% disso para a China. Estamos falando de quase US$ 25 bilhões de receita. Esse resultado se deve não apenas ao aumento de demanda, mas principalmente ao segundo fator do arco-íris perfeito: apesar de um atraso das chuvas no início da safra, as condições climáticas favoreceram a agricultura. Este ano, o Brasil deve passar dos 120 milhões de toneladas de soja, 5% a mais do que no ano passado e recorde histórico. Cerca de dois terços desses grãos vão para fora do país, o que pode nos levar a bater o recorde de exportações, de 2018.
A soja não é a única. De acordo com estimativa divulgada em 11 de agosto pela Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), a produção de grãos como um todo da safra 2019/20 caminha para um recorde de cerca de 255 milhões de toneladas, crescimento de 4,8% em relação ao ano passado. Além da soja, o milho, com mais de 100 milhões de toneladas em sua primeira safra, puxou o resultado. E várias outras colheitas estão acima do esperado: trigo, algodão, arroz, feijão…
O clima foi uma bênção, mas sozinho não seria capaz de alavancar a produção. A natureza recebe uma mão do terceiro fator do arco-íris perfeito do agronegócio: a competência de produtores, prestadores de serviço, pesquisadores, órgãos do governo, enfim, de todo o ecossistema que compõe o setor. ”Pelo terceiro ano consecutivo obtivemos um recorde de produtividade”, diz Aurélio Pavinato, diretor presidente da SLC, uma grande produtora de algodão, milho e soja. “Com a finalização da colheita, estamos efetuando mais uma revisão para cima, agora para quase 4 mil quilos por hectare”, diz.
Um raro círculo virtuoso
Esse terceiro fator não vem de agora. É fruto, ele próprio, de uma conjunção virtuosa de elementos inusitados para a realidade brasileira: políticas públicas eficientes que atravessaram vários governos, investimentos em pesquisa, empreendedores ávidos por crescer e competir com quem quer seja, abertura para capturar as inovações que vêm de fora e capacidade de formar nossos inovadores.
A própria SLC é um exemplo dessa realidade. Empresa de origem gaúcha, começou suas operações em 1977. Colhia entre 25 e 30 sacos de soja por hectare. Três anos depois, comprou terras em Cristalina, no cerrado, perto de Brasília, e começou a produzir lá também. Retirava míseros 8 sacos por hectare. “Não existia variedade de sementes para aquela região, não havia tratamento adequado do solo”, lembra Pavinato. No ano passado, a empresa colheu 62 sacos de soja por hectare. Este ano, superou-se: 65 sacos por hectare.
A história dessa evolução remonta às décadas de 1960 e 1970. Naquela época, a produtividade brasileira de grãos era baixíssima, cerca de 1 tonelada por hectare. O Brasil importava alimentos. Mas lá fora estava em pleno vapor a Revolução Verde, um acelerado processo de ganho de produtividade com a combinação de mecanização, uso intensivo de fertilizantes e defensivos químicos, melhoramento genético de sementes e monocultura de escala. Era a resposta à ameaça de fome mundial no pós-guerra. E o Brasil entrou na onda. Atrasado, mas com apetite.
Nos anos 1970, veio a mecanização. A produtividade cresceu pouco, a área plantada é que se multiplicou. Foi então que entrou o trabalho da Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária), desenvolvendo espécies mais adequadas para as condições brasileiras, técnicas de tratamento do solo, cursos de educação para produtores. A partir de 1997, a combinação de inovações tecnológicas e mecanização, política setorial bem-feita, linhas de crédito e controle da inflação promoveu um novo salto de produtividade.
Em resumo, como diz Celso Moretti, presidente da Embrapa, nos últimos 50 anos a produção de alimentos subiu 500%, com aumento de apenas 60% de área plantada. Entre 1975 e 2015, a produtividade total dos fatores no campo cresceu quase quatro vezes (dissecando pelos fatores: a produtividade da mão de obra foi multiplicada por 5,4; a da terra, por 4,4; a do capital, por 3,3). O agronegócio traz a mais forte evidência no país de quanto vale a pena investir em pesquisa. Segundo um estudo do ano passado do Ministério da Agricultura, um aumento de 1% nos gastos com pesquisa eleva a produtividade total em 1,1%. É o meio mais eficiente de melhorar os resultados.
Aliada à natureza privilegiada, a competência tornou nosso agronegócio o mais produtivo do mundo em larga escala. Somos o único país capaz de colher duas, até três safras por ano na mesma área. “Hoje, temos 15 milhões de hectares de dupla cultura. Até 2030, serão 30 milhões de hectares com dupla ou tripla safra. Sem irrigação”, diz Jank, do Insper.
A próxima etapa é investir em sistemas integrados: lavoura e pecuária. É um processo inédito no mundo. Planta-se, por exemplo, o milho. Quando ele está médio, planta-se o capim. Na hora de cortar o milho, o capim já está bom para servir de pasto. Isso ajuda a revigorar o solo para a próxima plantação de milho. Um avanço ainda maior é acrescentar árvores: pínus ou eucalipto. As árvores demoram mais para chegar à fase de corte, cerca de sete anos. Quando estão maiores, o pasto fica sombreado. Melhora a vida do boi, dá bem-estar à vaca. E aumenta os lucros. Vacas que pastam à sombra produzem de 10% a 15% mais leite. Em 2011, o Brasil tinha 3 milhões de hectares de sistemas integrados. Em 2017, já eram 15 milhões.
Fora aumentar a produtividade, esse tipo de produção é um sistema neutro de carbono: os gases de efeito estufa produzidos pela flatulência do gado são capturados pelas árvores em seu processo de crescimento. A Marfrig já tem um contrato com a Embrapa para receber um selo de produção carbono neutro — um diferencial para mercados mais sofisticados, como o europeu.
Vai verde, vem verde
O quarto fator do arco-íris perfeito é verde como as plantações e andou crescendo mais do que espigas de milho. Foi a alta do dólar. O câmbio estava um pouco abaixo dos R$ 4, na média do ano passado, e subiu para algo em torno de R$ 5,20 este ano, uma valorização de 30% a 35%. Para o exportador, isso significa que a mesma venda do ano passado lá fora rende muito mais dinheiro aqui dentro. Ele não aproveita a valorização inteira, porque, no caso da agricultura, a maior parte dos insumos acompanha a alta do dólar. “Defensivos agrícolas e fertilizantes são importados, e respondem por cerca de 50% de nosso custo”, diz Pavinato. Além disso, há a variação dos preços das commodities em dólar. A soja ficou mais ou menos estável do ano passado para cá, o algodão caiu uns 8%, o milho teve redução de 6% a 8%. Considerando tudo, um exportador típico de grãos recebeu de 12% a 15% a mais por saco. Nada ruim.
Um cenário assim tão favorável poderia não ter dado em nada. Afinal, o mundo viveu (ainda vive) uma parada no esforço produtivo e queda brusca de consumo. O medo nunca foi um bom combustível para a economia. “Eu mesmo falei no começo da crise que o agronegócio ia sofrer com a ruptura das cadeias de suprimento”, diz Marcos Jank. “Pelo menos até agora, nada disso aconteceu.” Ao contrário, o que se notou é que a demanda por alimentos é menos elástica do que se pensava.
É claro que nem tudo são flores no setor. O cultivo de flores, aliás, é um dos exemplos disso. Um cálculo do Instituto Brasileiro de Floricultura (Ibraflor) apontou perda de receita de R$ 1,3 bilhão apenas até o Dia das Mães, a principal data para esse comércio. Sem congressos, seminários, formaturas, casamentos, estima-se uma queda nas vendas de algo entre 70% e 90%, quebradeira de dois terços dos produtores e dezenas de milhares de desempregados.
Basicamente, tudo o que não é alimento sofreu com a covid-19. O preço do algodão caiu, o etanol deixou de ser consumido, a borracha perdeu negócios. Mas estamos falando de menos de 20% do agronegócio. E mesmo aí há tábuas de salvação. A China retomou atividades relativamente rápido, e o preço do algodão, que havia caído quase 30% no início do ano, subiu cerca de 25% de novo (sobre uma base menor; a perda ainda está em torno de 10% em relação ao ano passado). O etanol sofre colossalmente com a queda do preço do petróleo, mas quem produz etanol pode desviar sua produção para o açúcar — cuja exportação saltou 85% em julho, chegando perto do recorde de 3,5 milhões de toneladas em um mês.
Resumindo, a covid-19 é uma péssima notícia. Mas o agronegócio tem passado por ela, se não assintomático, pelo menos com manifestações leves da doença. “Em parte isso se deve ao trabalho bem-feito de dois ministros”, avalia Jank. “Tereza Cristina, da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, abriu mais de 40 possibilidades de mercado lá fora; e Tarcísio Gomes de Freitas, da Infraestrutura, garantiu a logística.”
Se deu sorte por ser pouco afetada com queda de demanda, a maior parte dos produtores foi competente o suficiente para não deixar a oferta cair. “Desde março, ainda não havia nenhum caso por perto e nós adotamos protocolos de isolamento, com uso de álcool em gel em todos os espaços, transporte respeitando distanciamento, medição de temperatura, reuniões ao ar livre com as pessoas afastadas”, diz Pavinato.
As grandes plantações se beneficiam de um natural espalhamento do pessoal. Numa colheitadeira costuma ir uma só pessoa. Os espaços são abertos. Mesmo assim, os cuidados — por exemplo, quem vem de fora da fazenda não tem contato com ninguém de dentro — têm sido mais bem implementados que nas cidades. Até os frigoríficos do país, locais onde o ajuntamento de pessoas é maior, têm conseguido controlar bem o número de casos. Alguns tiveram de ser fechados, mas foram poucos em relação aos dos Estados Unidos, por exemplo.
Em alguns casos, a pandemia deu até um empurrão nos lucros. “Criamos formas de interagir com os clientes por meio digital, com atendimento remoto, treinamento a distância, além das visitas muito pontuais”, diz Rodrigo Iafelice dos Santos, executivo-chefe da Solinftec, uma empresa que vende tecnologia e serviços para elevar a produtividade nos campos, com uso de sensores, maquinário e softwares. “Crescemos quase 30% em relação ao fim do ano passado. E aproveitamos para incorporar algumas dessas eficiências no modelo de negócios.” A meta é ter um crescimento ainda mais acelerado no segundo semestre e em 2021.
O arco-íris é permanente?
O desempenho do agronegócio já é de encher os olhos há um bom tempo. Na comparação com os demais setores, que tombaram na crise, ele ficou ainda mais chamativo. Não tardaram a aparecer as análises de que o agronegócio pode salvar o Brasil. Que teremos uma economia puxada a tratores.
Como todas as opiniões peremptórias e unidirecionais, esta precisa ser tomada com boa dose de ceticismo. O agronegócio é um belo caso de sucesso, mas o Brasil é bem maior e mais complexo do que um setor só. Algo como cinco vezes maior. O PIB do agronegócio representa por volta de 22% do PIB do país. Com seu sucesso agora, e as dificuldades nas outras áreas, pode subir mais um pouco. Mas não dá para garantir a vida dos brasileiros.
E esse cálculo considera o agronegócio como um todo, não apenas aquilo que o cidadão médio urbano imagina como agronegócio — fazendas, pés de soja ou cana e bois no pasto. Essa parte, a agropecuária, representa cerca de 7% do PIB. Em geral, divide-se o setor em três áreas. A primeira, comumente chamada de “antes da porteira”, é composta das grandes empresas de sementes, fertilizantes, sêmen de gado, maquinário, tecnologia para melhorar a produtividade etc. A segunda, “dentro da porteira”, são as fazendas em si, os produtores. E a terceira, “depois da porteira”, é formada pelos processos de armazenamento, logística, beneficiamento, comércio.
De janeiro a maio, o PIB do agro cresceu 4,62%. Mas esse excelente resultado é desigual. A pecuária, puxada pelo apetite chinês, cresceu 9%. A agricultura, 2,51%. E dentro de cada uma delas as diferenças também despontam. Na agricultura, o setor de insumos cresceu apenas 0,85% nos primeiros cinco meses do ano, e os serviços ligados às fazendas cresceram 0,69%; o setor primário, que envolve as plantações, cresceu 15,17%; mas a agroindústria caiu 3,07%, de acordo com o Centro de Estudos Avançados em Economia Aplicada (Cepea), da USP. Na pecuária, sim, o crescimento foi mais assombroso: 11,53% em serviços, 9,04% na indústria, 6,20% no setor primário e 1,32% nos insumos, entre janeiro e maio.
Essas distinções deixam claro que, embora o setor seja pujante há décadas, estamos vivendo um momento muito especial. Quanto tempo ele vai durar? Assim como as tempestades, mesmo as perfeitas, um dia passam, também os arco-íris tendem a esmaecer, e depois sumir.
Não é de surpreender, portanto, que o Índice de Confiança do Agronegócio, medido pela Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp) e pela Organização das Cooperativas Brasileiras (OCB), tenha caído no primeiro trimestre deste ano. A pontuação geral é de 100,4 pontos (sendo 100 o nível que separa o otimismo do pessimismo). Para a indústria antes da porteira, a confiança está em apenas 86,2 pontos; para a indústria depois da porteira, 92,5. Os produtores, tanto pecuários quanto agrícolas, ainda se mostravam otimistas, com 113,8 e 116,1 pontos respectivamente, mas bem menos do que no final do ano passado. É verdade que esse humor foi medido ainda no início da pandemia, quando se temia um colapso das cadeias de fornecimento. Mas há outros fatores de alerta.
Um deles é a China. É provável que os efeitos da peste suína africana ainda se façam sentir em 2021, mas depois disso não só sua produção estará refeita, o país deverá se tornar uma potência no setor. Em 2003, conforme o Manual do Criador Animal da China, 70% de toda a produção de porcos do país vinha de fazendas com menos de 50 abates por ano, e só 3% vinham de fazendas com mais de 10 mil cabeças. Em 2022, a estimativa pré-peste era de que 42% da produção viesse das grandes fazendas, e os pequenos produtores respondessem por apenas 3% do mercado. Com a peste, esse processo vai se acelerar. O governo chinês passou a encarar a reformulação da indústria como prioridade nacional: no final do ano passado, começou uma política de subsídios para a construção de grandes fazendas de porcos. Não só a questão sanitária poderá ser mais bem cuidada, sua produtividade deverá aumentar muito. As importações do Brasil, ainda que não cessem completamente, deverão diminuir.
Ainda no capítulo China, a guerra comercial com os Estados Unidos pode arrefecer, especialmente se o presidente norte-americano, Donald Trump, não se reeleger no fim deste ano. E isso significa uma concorrência maior dos norte-americanos para os produtos que o Brasil exporta.
Outro ponto de preocupação é o mercado interno. Ele responde por 60% das receitas do agronegócio. Com uma recessão que se estima atingir 5% de queda do PIB, a demanda deve cair. As pessoas trocam carne de primeira por carne de segunda e por aí vai. Além disso, num cenário recessivo há o temor de corte nas linhas de crédito. As safras deste ano já estão garantidas, mas o humor de agora afeta os resultados do ano que vem.
Finalmente, há a questão ambiental. Parte do governo a descarta como propaganda de competidores, um protecionismo disfarçado. Mas a própria corrente majoritária do agronegócio considera este um risco desnecessário para o país. “A questão ambiental existe, é verdadeira”, diz Pavinato, da SLC. “Uma parte da sociedade é muito sensível à proteção ambiental. E o Brasil é o país mais sujeito a pressão, porque aqui tem havido aumento de área plantada, embora em muito menor grau que a expansão da produção. Nós somos a maior fronteira agrícola do mundo.”
Se esses são os riscos para o agronegócio, há também os incentivos. O maior deles é a demanda mundial por alimentos. Com o aumento da população, a ONU estima que até 2050 a produção agrícola mundial precisará crescer 70%, sendo 100% nos países emergentes. E isso sem contar os biocombustíveis. A oportunidade é gritante. A Austrália, por exemplo, já iniciou um plano para que sua agricultura cresça 70% até 2030 e se torne uma indústria de US$ 100 bilhões. Mas, por seu clima, seu tamanho e pela indústria bem estabelecida, o Brasil é o principal candidato a suprir a maior parte dessa demanda futura.
Outro enorme impulso para o agronegócio é a quantidade de inovações que estão surgindo para melhorar a produtividade. Trata-se de uma revolução permanente, que tem entregado um aumento de produtividade perto dos 4% anuais. Há dezenas de startups brasileiras e estrangeiras, com soluções que vão de drones a sensores para detectar a quantidade mais eficiente de fertilizante, de manipulações genéticas das plantas a banhos de micróbios, de acompanhamento por satélite das plantações ao uso de inteligência artificial para tomar decisões sobre como, quando, quanto plantar.
Finalmente, há o dólar, com perspectiva de manter-se num patamar confortável para os exportadores por bom tempo.
Pesando prós e contras, o atual momento extraordinário do agronegócio pode até não se manter, mas não deve despencar. O setor seguirá como o mais dinâmico do país, o mais globalizado, o mais competitivo. Pode não carregar o Brasil sozinho, mas ajuda. Imagine se o Brasil — com menos burocracia, infraestrutura melhor, mão de obra mais produtiva, legislação mais simples — ajudasse de volta.
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“Uma fake news amazônica”, por J. R. Guzzo, e “O produtor rural é quem mais preserva o meio ambiente”, por Branca Nunes